“Diários anacrônicos da solidão”
Decidi começar 2012 com três livros da novíssima prosa brasileira, todos de autores jovens, bem conceituados, com propostas criativas e sempre dialogando com os temas da contemporaneidade “pós-moderna” – solidão, deslocamento espacial e social, diluição das fronteiras, despatrialização, fuga da realidade... O que nos leva à questão óbvia: serão as idéias tão criativas assim quando os locais visitados são tão recorrentes, perigando a onipresença?
O primeiro impulso me leva a responder que esses lugares comuns são próprios do universo de possibilidades de que a narrativa brasileira tem se servido, a partir das questões mais imediatas e palpáveis que permeiam nosso imaginário. Não há nada de errado nessas recorrências, grandes escolas literárias transitaram pela mesma constância temática sem que isso representasse, necessariamente, um mal e, ainda que não possamos falar de uma escola na prosa brasileira contemporânea, fato é que existem traços geracionais inegáveis que se impõem (de maneira mais, ou menos, consciente).
Para além desses eixos temáticos comuns, no entanto, um outro elemento, de caráter formal, parece gritar sua constância nas obras mais recentes que li: a narrativa em primeira pessoa (dando ao texto uma carga subjetiva gigantesca) somada ao uso de uma temporalidade descontínua, que, se oferece possibilidades de abusar na criatividade, apresenta alguns riscos também, como a emergência de digressões extremamente desnecessárias. Além disso, a própria narrativa perde em verossimilhança (o que, vá lá, não é necessariamente um mal, mas incomoda) quando não sabemos exatamente em que consistem os relatos: serão testemunhos organizados sob a forma de um diário?; serão pensamentos encadeados do eu lírico?; serão um desabafo? Mesmo quando a explicação é dada, muitas vezes ela não cola.
Dando nome aos bois: os livros a que estou me referindo são Diário da queda, de Michel Laub, Pornopopéia, de Reinaldo Moraes, e Dois rios, de Tatiana Salem Levy. Excetuando Moraes (sessentão a quem chamo jovem pela escrita e pelo papel de sua Pornopopéia na tal novíssima prosa brasileira), os outros dois estão na casa dos trinta anos, todos com estilos diferentes, níveis desiguais de densidade subjetiva, ideias radicalmente opostas quanto ao otimismo ou à desilusão. E, no entanto, todos partilham dos elementos destacados acima, o que me faz pensar que o formato “diários anacrônicos da solidão” vem se impondo como regra literária no Brasil. Uma pena? Bem, os livros são ótimos (friso: ótimos!), não fosse a triste impressão de se estar recorrendo aos exemplares estendidos de experiências de criação testadas na mesma oficina de prosa...
“Dois rios”
Dos três livros que li, o de Tatiana Levy não foi aquele de que gostei mais. Mas me levantou questões para pensar (no que há de bom em seu texto e também no que considero seus pontos fracos). Com eus líricos diferentes nas duas partes que o compõem, Dois rios narra a história de dois irmãos gêmeos, Joana e Antônio, a partir de seus próprios pontos de vista no tocante à relação entre eles dois e à de cada um deles, separadamente, com uma francesa misteriosa de nome Marie-Ange. Isso exposto, a escolha do título torna-se compreensível. Ok, mas há ainda a referência à vila de Dois Rios, em Ilha Grande, cenário da infância dos personagens e também o local onde a cumplicidade umbilical dos dois sofre um abalo radical, quando da notícia da morte de seu pai. Bela escolha de título. Um ponto para Tatiana.
Os cenários da história variam entre a vila insular, a orla de Copacabana (onde os personagens residiam, quando crianças, e onde Joana mora ainda com uma mãe obcecada por seus transtornos e medos) e a ilha da Córsega, na França, terra natal de Marie-Ange, na qual os dois irmãos vivem experiências profundas de autoconhecimento junto à francesa, em momentos diferentes que se ligam de maneira um pouco vacilante ao longo do texto. Marie-Ange tem um papel fundamental em suas vidas, mudando drasticamente suas rotinas e levando-os a questionar seus próprios medos, suas próprias escolhas, além de encaminhar, indiretamente, uma possível reaproximação que acontece para além das páginas do livro.
Tudo é dois: dois irmãos, dois rios, duas ilhas, duas escolhas radicalmente opostas e duas visões de mundo. Além disso, a primeira parte do livro assume uma perspectiva feminina evidente, enquanto a segunda procura enveredar pelo universo masculino através dos olhos de Antônio. Acontece que a dualidade muitas vezes não convence. As visões radicalmente opostas, quando dissecadas pela autora, não são tão opostas assim, e os motivos que levaram ao rompimento passam por uma sucessão de eventos confusos que não se sustentam ao longo das páginas. O que levou à separação dos dois? O egoísmo de Antônio, incutindo na irmã uma culpa de que ela não pôde escapar? A fraqueza de Joana em não saber superar um trauma e levar ao irmão a se sentir preso a um espaço de tristeza e obsessão, do qual não restava alternativa senão a fuga? O desenvolvimento da intimidade dos irmãos, num início de adolescência, que os constrangia, na descoberta conjunta do erotismo e na vivência de tabus? O sentimento de que essas experiências foram responsáveis pela morte de seu pai? Tudo isso, em graus diferentes, dependendo do narrador, do momento narrado e da visão de cada personagem antes, durante e depois do contato com Marie-Ange.
Nada é preciso, como nada é preciso na mente humana, que se reconstrói a cada momento. Para solucionar essa equação, Tatiana Levy recorre a uma psicologização dos personagens, na busca interior de cada um de se auto-conhecer e reviver seus traumas e medos. Acontece que esse ar psicanalítico incorre em clichês bastante incômodos, além de não resolver as contradições presentes no livro e os problemas na seqüência da história. Além disso, um romantismo quase infantil invade, por vezes, o texto de Tatiana, interrompendo algumas seqüências belas e bem escritas. Como é ruim se deparar com a pergunta “é muito diferente do amor, a morte?”, única frase de uma das sessões do livro e, no mais, sem nenhuma contribuição para a obra além de uma pieguice das mais desconfortáveis.
Mas como é bom ler outra consideração (romântica, psicologizada e belíssima!) de Antônio sobre o desastre (vivenciado no sumiço de Marie-Ange de sua vida): “o desastre, Marie-Ange, nada mais é do que o ponto de interseção entre duas esperas, a ligação e a ruptura entre elas. Primeiro, esperamos o desastre acontecer. Depois, esperamos que ele nunca tenha acontecido, que o tempo presente vá engolir o passado e fazer com que tudo seja como antes, ou que o futuro chegue logo e, com ele, o esquecimento.” Outra bola dentro, Tatiana! Aliás, como várias outras digressões sobre o tempo e as diferentes temporalidades que habitam a vida. Esse, em minha opinião, é o ponto alto do livro, o que me fez gostar de ler as pouco mais de duas centenas de páginas que o compõem.
E olha que nessas páginas muita coisa pode ir embora sem fazer falta... Quantas vezes o ritmo do livro fica arrastaaaado, preso em divagações que servem mais para encher lingüiça do que para contribuir para a trama (geralmente dotadas do exato tom romântico a que me referi acima). Além disso, as duas partes do livro, que deveriam constituir totalidades separadas, são desiguais: a segunda parece correr atrás da primeira. A narrativa de Antônio procura responder à narrativa de Joana, ainda que não haja contato direto entre as duas e que ambas se façam em primeira pessoa, o que revela um erro de cálculo da autora ou falta de fôlego.
No mais... E a Marie-Ange? O que é ela exatamente? Uma aparição fruto do subconsciente de Joana e Antônio para que suas vidas interrompessem seus fluxos “naturais” e se voltassem à reflexão de um passado nada resolvido? Um ser sobrenatural ou mítico com o dom inspirar, subitamente, novas aspirações e desejos em quem a conhece (e de sumir, sem explicações, logo depois de ter cumprido sua missão)? Quem é Marie-Ange? Em um livro muito psicologizado, nada menos explorado do que essa personagem crucial, tão pouco convincente quanto a paixão arrebatadora que a envolve aos dois irmãos, fazendo-os abandonar seus mundos – nada cômodos, diga-se de passagem – para segui-la.
Marie-Ange parece, mais do que tudo, uma personagem alegórica, e como tal tem o seu valor (algo como o grilo falante de Pinóquio, em uma versão sensual e voraz). Aliás, alegórico é todo o livro! Escusando-lhe o romantismo um tanto tolo (invadindo uma narrativa tão próxima às inquietações da contemporaneidade) e as vezes em que a autora perde as rédeas da história, Dois rios, como parábola épica, rola, e rola bem. Belo e esperançoso relato sobre vidas separadas por silêncios partilhados.