segunda-feira, 6 de julho de 2009

Hoje cedinho

Hoje acordei cedinho.
Deixei o café coando no filtro enquanto sentava na varanda e ficava vendo o dia aparecer por trás dos prédios de tijolos laranja de um condomínio particularmente grande a alguns metros da minha casa.
Quando fui pegar uma caneca, o café já estava meio frio, mas nem importava porque a manhã estava meio quente. Acendi um único cigarro que nem consegui fumar até o final e fiquei olhando pro céu que já estava completamente claro e sem nenhuma nuvem.
Tomei mais um pouco do café, agora gelado, e fui pro banho. Peguei qualquer roupa no armário, meti a mochila nas costas, saí pra rua, e me senti completamente feliz.
(mentira)

Ontem

Ontem eu peguei um jornal com alguns artigos interessantes sobre cultura e as formas de manifestações artísticas e culturais na contemporaneidade, e como tudo isso parece ser abandonado pelas políticas públicas, e que, mesmo assim, os jovens (como?!) persistem em organizar-se em grupos para discussões estéticas e produção de arte, e que isso é super importante e fundamental – e tudo isso me mostrando como, de qualquer forma, eu estou alheio a essa coisa toda.
Aí eu resolvi, por decreto, que me tornaria o maior expoente de um movimento artístico-literário cujo nome ainda não sei, mas que revolucionaria o pensar-arte imbricando-se nas mais variadas formas de divulgação midiática, interação cognitiva, hermenêutica performática e holismo sócio-apreensível, tornando o espaço externo e interno um só invólucro de experiência transcendental que, possivelmente, possibilitaria o alcance do nirvana ou do gozo primal no tempo do “partilhar com” e do “partir-se em” unindo a tudo e a todos no único laço verdadeiramente possível de se estabelecer entre a cosmogonia e a individualidade, a saber, a pertença à posição fetal (enquanto modelo físico e enquanto modelo psíquico-espiritual).
Mas aí me deu um sono...

quarta-feira, 1 de julho de 2009

Clarice não queria

A edição especial da Piauí que será distribuída de graça na FLIP do dia primeiro ao dia cinco de julho (período de duração da feira) contou com um concurso literário homenageando o ilustrador Al Parker: os participantes deveriam escrever uma história original com base em uma de suas ilustrações. Resolvi participar do concurso e escrevi um conto/crônica que acho que ficou bem bacana. Qual não é a minha satisfação (puts, que frase feita...) quando descubro, hoje, que o meu conto foi o vencedor do concurso! Já tinha decidido postá-lo aqui no Mi Esperma Urgente, só faltando-me tempo para fazê-lo... Pois bem, faço-o agora:



CLARICE NÃO QUERIA



Clarice não queria ser famosa. Clarice não queria carros, brilhantes ou vestidos de alta-costura. Clarice não queria cachorros de raça tomando conta do jardim com fonte e esculturas de estilo neoclássico e, sobretudo, Clarice não queria Ricardo.

Ricardo era uma espécie de homem à moda antiga, gentil e discreto. Trabalhava geralmente de tarde, jantava por volta das 20 horas, não fumava mais de meio maço por dia e não dormia sem um cálice de licor. Ricardo não bebia nada alcoólico além de licor. Ricardo não gostava de charutos. Ricardo não ria, a não ser em raras ocasiões, e não falava além do necessário. Ricardo não amava Clarice.

Clarice vivia de sua imagem. Vivia dos vestidos e brilhantes que ostentava sem orgulho. Vivia das colunas sociais e dos sorrisos marcados pelo batom carmim. Vivia do delicado lápis preto em torno do olho. Vivia por viver. Clarice não vivia.

Ricardo oferecia jantares em que Clarice sempre estava: carmim, lápis, vestido e brilhantes. Nos jantares, Clarice ria elegantemente - nem alto demais, o que seria indelicado, nem baixo demais, o que demonstraria timidez -; comia pouco, bebia não mais que alguns goles. Nos jantares, Clarice não fumava.

Clarice não queria viajar com Ricardo. Clarice não queria andar de avião, fazer malas, comprar roupas. Clarice não queria ter que voltar e jantar e sorrir, e viajar de novo, fazer malas, pegar táxis. Ricardo corria as cidades em busca das melhores oportunidades e quase não olhava os lugares por onde passava. Clarice nem lembrava que passava por aqueles lugares.

Clarice sabia que Ricardo sabia. Ricardo nunca disse que sabia. Clarice sentou-se no chão do quarto, apagou o cigarro. Deitou-se, enfim. Queria chorar, mas não chorou. Ricardo entrou. Clarice olhou Ricardo. Ricardo queria passar, Clarice deu passagem. No dia seguinte haveria festa, mais licor e mais brilhantes. Seria o dia mais importante do ano, o dia mais aguardado por todos. Ricardo queria que tudo fosse perfeito. Clarice levantou-se do chão, tirou o lápis preto, o vestido, o batom.

Clarice não queria.

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Gostaria de agradecer a galera da edição pelos os comentários generosos!

"Não foi apenas com desassombro que João Gabriel da Silva Ascenso enfrentou o desafio brutal de urdir uma historieta memorável a partir da ilustração ao lado, selecionada, diga-se, com bom gosto exemplar, pelo corpo de eruditos sustentados por piauí. Não. João Gabriel da Silva Ascenso também pôs em campo o talento que o Senhor, na Sua infinita munificência, lhe concedeu. A evidência não mente: estamos diante de um fenômeno maior. Não espantará se, ano que vem, esta feira literária dedicar mais de um colóquio à sua obra, que até lá, espera-se, já será mais extensa do que a de Josué Montello.*

* A bem da verdade, esta introdução foi escrita antes de escolhermos o vencedor. Por questões de prazo, deixamos em aberto apenas o nome do escriba. Diante do resultado, precisamos confessar: assim como Clarice, também não sabemos direito por que premiamos esse texto. Talvez por estarmos perplexos. Não se fala de outra coisa por aqui. Por todas as opalas de Teresina, que diabos Clarice sabia que Ricardo sabia mas Ricardo nunca disse que sabia? Precisamos saber. Quanto a Clarice, vão aqui algumas sugestões: divórcio, Lexotan, Frontal, Vicodin, Wellbutrin e, se nada disso der certo, eletrochoque. Ou um chacoalhão muito bem dado."

Fica aqui meu obrigado à Piauí e a todas as opalas de Teresina. Quanto às sugestões, fiquem certos de que Clarice tomará nota!