terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Remover dispositivo com segurança

Entre o turbilhão de fios e bobinas
que zumbem progresso e felicidade entre os poros metálicos dum bebê robô
curto o caos alucinante em tons de néon
(nele sou Deus e mastigo o infinito – pelos plugues que ligam minha nuca ao servidor)
- sobrecarga

A memória mal suporta a velocidade alucinada do transporte de dados
o chip já demonstra falhas graves no processamento das informações
- pane

clic clic clic
Remover dispositivo com segurança
Parar? Ok

.
.
.

Tudo escuro
morno
aconchegante

Dez(s)caminhos

Se vou ao encontro,
                          parto a cara

Se fico imóvel,
comem-me os olhos

Se fujo,
apavoro



Quantos caminhos poderia percorrer
até que o mistério fosse resolvido?

Mas qual!, que o mistério são os próprios caminhos
– e sou, em cada um deles, o exato oposto da imagem no espelho
             que reflete
                          o ideal
                                       de cada caminho



Se ergo o braço, tremo
Se não ergo, tremo
Se bebo, fumo, tremo tremo

Enquanto tento ser o herói
que ostenta com fingida pompa
o manto da perfeição

que o deixa nu

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Ê, Minas

Acordei hoje, nem tarde nem cedo, dei uma volta por aí, voltei cansado, comi... E, de repente, podia jurar que estava em Minas. A minha Minas, a Minas dos meus sonhos, devidamente idealizada, bela, simples e eternamente jovem. O som tocando no meu quarto, a minha leve sonolência, o clima abafado do início de tarde e o descompromisso de não ter o que fazer (tendo muita coisa pra fazer) me levavam para aquela cidade onde – faz quanto tempo mesmo? – fui batizado nessas coisas do mundo. Aquela cidade onde achei minha casa, onde bebia sem compromisso, sem culpa (e o dia inteiro) --- onde comia como um combatente faminto --- onde passei as tardes mais agradáveis da minha vida --- onde tudo parecia bom --- quando nada precisava acabar ---


(Olho aquela foto em preto e branco e me vejo em pé, em meio àqueles que me faziam feliz, e estou tão jovem!, tão distante!, tão diferente e tão com os mesmos medos que trago comigo até hoje... meu cabelo, ainda grande... minha barba, ainda rala... meus sonhos, ainda possíveis... Não é saudade, é um olhar metido-a-bestamente complacente, frente àquela infantil felicidade, mas cheio de alegria, ternura – e, vá lá, com uma pontinha de nostalgia também.)


Senti-me em Minas, de novo em Minas --- e essa nuvem narcótica que me envolveu é tão confortável --- que podia morar nela para sempre --- nessa minha Minas, que não volta, mas que não passa --- que me fez um homem entre os tantos que eu poderia ser ---


(E a foto continua me olhando, me mostrando de cima que eu já tive o mundo em minhas mãos. Hoje tenho menos. Mas esse clima abafado, esse sono... Acho que vou chorar.)

Barraquinha de frutas

Abacaxi com hortelã – pã!

Melancia, mexerica, na barraquinha de frutas

Uvas e bananas, tudo tão gostoso

Cheio de vida, clorofila, sumo

Mastigo tudo, engulo com o bagaço – asso!

Transtorno Obsessivo Compulsivo

¿será absurdo ler um livro

quando só me preocupo, o tempo todo

se meus dedos suados vão molhar o papel?

domingo, 28 de novembro de 2010

Nadando sem Rumo

--> Na TV, a moça disse:
“Você tem na sua frente uma mulher de 36 anos num corpo de 16, isso é o sonho erótico de qualquer homem!”

--> Minha tia falou:
“Eu ficaria feliz em ser uma mulher de 60 num corpo de 40.”

--> Eu pensei:
“Eu só queria ser um peixe...”

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Tic-tac

Relógio, pai das mais fundas angústias, fez um acordo com minhas obsessões e me deixou aqui: sozinho, estúpido.

Fez de tudo para domar meus instintos e, não conseguindo, se contentou em me enlouquecer.
Mostrou-me ser o pai de toda a ordem que desprezo (mas que não posso viver sem).
Mostrou-me que a vida é mensurável, se a aceitarmos mensurável.
Como negá-la?

Os ponteiros em sua órbita ferem-me mortalmente. Suas setas me injetam doses altas de adrenalina: é uma corrida contra o futuro. É uma corrida louca para expandir o presente, que sempre acaba passando rápido demais, sem deixar-me dele mais do que um breve rastro. E eis-me correndo novamente, tentando em vão me manter de pé, assumir-me no meio dessas obsessões que se nutrem da minha culpa pelo presente perdido.

Com (ingênua?) fé, mantenho-me de pé e suporto o peso do relógio... Que, talvez para me iludir, convence-me de que o tempo que me escraviza é o mesmo tempo que me absolve.

O Rio de Luzia

O que sempre me encantou na cidade do Rio de Janeiro foi o sincretismo completamente harmonioso que se dá entre o clássico e o moderno. Por isso, a despeito das belas praias da Zona Sul, da delícia melancólica do Subúrbio, da maravilha tropical e das belezas naturais que assombram estrangeiros desprevenidos, o Rio é, e o foi desde a infância para mim, o Centro da Cidade.

Caminhar pela Avenida Passos, margeando alguns sobrados e sebos de livros eternos; desbravar o Largo de São Francisco, onde o barroco de uma Igreja – e a irreverência de um gigante engastado na praça – convivem com um horizonte de concreto em constante mutação; passear pela Presidente Vargas e rodear o Campo de Santana (misturando, na retina, o verde das árvores, o cinza do asfalto e o azul do céu); ou andar a esmo por pequenas ruas como a do Ouvidor, de onde se vê, ao se dirigir o olhar para cima, as torres sagradas de andares infinitos que guardam as cidades do nosso tempo; tudo isso me dá a sensação de estar mergulhando em uma terra maravilhosa. Uma terra de nobres cavaleiros e donzelas de escrita romântica, mas também com uma sobriedade de ficção científica, que prescinde de efeitos especiais; terra que confere um traço de belle époque à Metrópolis de Fritz Lang.

E esse meu sentimento de síntese não se restringe à arquitetura do lugar: estende-se pelo espírito que se apreende nas ruas, misturando a devoção comovente nas igrejas (e como é mágica a alvorada de São Jorge!), a engenhosidade dos camelôs e os aparatos tecnológicos geniais encontrados na Uruguaiana – um dos maiores pólos do universo no comércio de tecnologia de ponta. Estende-se pelo cheiro vivo que nos embriaga um tanto nas esquinas e ruelas, nos copos de vidro riscado onde se depositam, religiosamente, café, cachaça e cerveja (a salvação ancestral de tantos dos nossos) e na frente dos quais se encontram grandes telas ligadas ao mundo pelos sinais místicos das tevês a cabo. Estende-se ainda pelos trens e ônibus que trazem, diariamente, homens e sonhos (de passado e de futuro), e que levam, no fim da tarde, os mesmos homens e alguns sonhos a mais ou a menos.

Assim é, para mim, o Rio de Janeiro: ida e vinda, ontem e amanhã.

E assim é Luzia.

Luzia me dá a impressão de ser uma Princesa Leia do século XIX, que veio parar na minha vida como um holograma, vendo em cada gesto do mundo a sua única esperança. É órfã, de pai e de mãe. Talvez por isso busque suas raízes em tudo o que vê. Escolheu sua história entre o popular e o erudito, entre o moderno e o parnasiano, entre o que chora e o que ri. E por apreciar tanto a liberdade, chegou mesmo a escolher sua data de aniversário, e decidiu que nasce a cada ano no domingo de carnaval, de modo que o dia, em si, varia como varia sua mente em desatino. Escolheu o carnaval por ser festa atemporal – ou antes pan-temporal –, por conter o tradicional e o informal dentro de si. Ah, e é claro, Luzia escolheu o Rio.

Foi num domingo de carnaval, no Rio, que vi Luzia pela primeira vez. Estava vestida toda de preto, com uma rosa amarela ajustada cuidadosamente entre o crânio e a orelha esquerda, sapatinhos de fivela e um par de óculos escuros prendendo os fios revoltos do cabelo já grisalho. Sobre um dos seios, um broche de madrepérola com uma cruz finíssima e, pendendo do pescoço, os fios curtos dos fones de um iPod, inútil num dia de festa. Sentada nas escadarias apinhadas de gente do Teatro Municipal, enquanto passava algum bloco pela Cinelândia, Luzia parecia combinar completamente com todo o entorno, cada coluna, cada detalhe do prédio. Luzia parecia, para mim, estar em sintonia com tudo o que havia no mundo, e no mundo que era a cidade. Amei-a desde esse dia.

Luzia me relatou sua trajetória enquanto caminhávamos por becos que me eram, até então, desconhecidos (não em sua forma física, mas em sua essência). Falava-me de seus sonhos de artista da vida – vida que para ela era como um happening – e eu me via cada vez mais envolvido naquele espetáculo. Contava-me a história de cada canto da cidade – os mesmos cantos que eu aprendera a amar desde criança –, enquanto eu escutava, maravilhado, aquelas narrativas, tão verdadeiras que só poderiam ter sido criadas pela sua cabeça.

Correu, então, até o Largo da Carioca, cheio até não poder mais de pierrôs, árabes e freiras, todos cobertos de confete. Apontou-me o céu, com um braço em posição vertical, e começou a girar no eixo, dando ao outro um movimento circular, como se brincasse de relógio. “Olha”, me disse, séria, “esse é o coração da cidade; todo o resto são artérias e veias que saem daqui”. E começou a rir tanto que me desconcertou. Descobri, naquele instante, que ali era o marco inicial de nossa jornada rumo ao desconhecido. O futuro, quem sabe, um futuro incrustado na pedra.

Emocionado, não consegui me conter: “ô, Luzia, me dá um beijo?”, pedi. Ela sorriu. Fez um carinho gostoso na minha cabeça e sumiu por entre a multidão que brincava o carnaval como ela brincava de viver.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

'Spectacial' toast

In that little bottle, wine was soft and cold
I was only waiting to find out the world
Then I saw my father, he was happy and fat
Drank a little more wine, told me, just like that:

'Boy, it’s "spectacial" to feel all this glee
– Knew he was just trying to get along with me –
Know the things that, on Earth, we’ve got to see
If there’s none, come on!, invent, my boy, you’re free!'

Dad, I love you and I love the way we’re fine
Despite all the troubles, after so much time
Nice to see what life can bring us all to do
Nice to share this cup of red dry wine with you

Nice to share this cup of red dry wine with you
But now I have got to see what I am through

Got to find my way and hold what I can reach
Thanks for all the pretty things you tried to teach
Now my time has come to be put on the line
Let me share with you another cup of wine

There’s no need to run, oh!, there’s no need to flee
But I am just a 21 old boy, you see
And if I left to San Fran, if I left to coastland?
You’d not say a thing but guess you’d understand

Even though you never took me by the hand
You’d not say a thing but guess you’d understand

Yes, it’d be 'spectacial' to live by the sea
Fucking all the mess up, kicking with the knee
Big fat California, when I get to see
Life will be the same, but so will not be me

Dirt is in the rubbish bin, we’re now so rich
Life is just so nice, oh God!, life is a bitch!
There’s no home at home, the road goes ever on
Take a cup of wine with your 'spectacial' son

'Boy, it’s "spectacial" to feel all this glee
– Knew he was just trying to get along with me –
Know the things that, on Earth, we’ve got to see
If there’s none, come on!, invent, my boy, you’re free!'

Yes, it’d be 'spectacial' to live by the sea
Fucking all the mess up, kicking with the knee
Big fat California, when I get to see
Life will be the same, but so will not be me

Fim da estrada

Nas largas estradas da vida, que percorro há anos de olhos abertos (embora nem sempre atentos), a angústia dos que têm pressa, e não sabem pressa de que, e a coragem de quem está a um passo do abismo, no topo do mundo.
Nas mãos, por muito tempo, as páginas do livro da danação, o sublime livro dos pecados e do perdão. Ele me acompanhou na estrada, na rota-22, suas infinitas páginas me ensinando que ela não se esgota, ainda que os caminhos se repitam com uma freqüência entediante. Mas todos os livros, todos! (mesmo aqueles de infinitas páginas), chegam a um fim. E a minha estrada precisava de um ponto final para que um novo livro (talvez mais perigoso do que o primeiro) começasse a ser lido/escrito.

Foi com dor e prazer que senti que o fim estava perto, que a estrada ia terminar. Desde o início da rota-22 eu me perdia nas alturas do monstruoso viaduto que me elevava tão alto que eu conseguia ver, do meu trampolim de concreto, toda uma cidade e mesmo as casas onde meus antepassados viveram por tantos anos, antes mesmo que o Sol nascesse pelas bandas da América Latina. E essa visão, desde a primeira vez, era a maior de todas, a mais sublime, a que me fazia querer ser parte daquilo. Eu era parte daquilo, e ainda nem havia o livro para me ensinar o quanto isso era verdade...
O livro me mostrou que a rota-22 era mais real e mais perceptível do que os meus sentidos mais aguçados poderiam perceber. Mas os fui treinando e com o tempo, ao longo da rota e através das páginas de minha enciclopédia universal, comecei a partilhar da percepção de que ela tinha um sentido muito mais difícil de ser descoberto, e quem o descobrisse comeria a maçã do Éden e talvez preferisse voltar atrás tomando a pílula azul. Mesmo assim, continuei preso no fluxo da rota, sem conseguir controlar a velocidade dessas verdades que me dilaceravam – e a da vida em si, que ganhava e perdia sentidos com uma facilidade assombrosa.

Fechei o livro. Um silêncio pesado como o concreto da estrada me fez sentir que algo estava fora de lugar. O infinito, quem diria, chegara a seu ponto final: o meu ponto final. E continuava infinito. Porque a estrada continuava lá, cheia de significados. Mas era o fim da estrada. O fim da rota-22. E o silêncio pesado...

Desci do ônibus e continuei em silêncio por alguns instantes. Continuava preso às páginas do livro, mas sabia que não podia. Tinha que fazer valer aquele ponto final. Minha vida é cheia de pontos finais que se entrecruzam e se perdem e eu nunca sei o que é início e o que é fim. Mas dessa vez era diferente. Dessa vez eu sabia. O livro estava fechado, na mochila, e em breve estaria na estante e seria apenas mais um. Eu tinha que fazer com que ele fosse apenas mais um, não poderia percorrer a rota-22 para sempre (embora – eu sabia – ela fosse durar para sempre). Ela que começara antes do livro, mas que se misturara a ele de maneira tão surpreendente e íntima... Uma coisa não poderia existir sem a outra, não mais, e eu deveria prescindir de ambas. Ou ao menos conviver com a abstinência.
O fim da rota-22, quem diria! Eu estava pulando fora. Saltei do ônibus para o que havia além, e que exigiria de mim uma força sobre-humana. Sentado à beira de estrada, olhava o meu caminho de tanto tempo, e custava e criar forças para ir embora. Mas o livro acabara. Era o fim.
Um dos muitos que viriam...

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

A materialidade do pagão

Fumei um cigarro Gauloises e senti gosto de fumaça.
Que desencantamento!
Não consegui sentir o gosto da história, o gosto de Sartre, o gosto das gaulesas dançando paganisticamente na minha boca, entre os meus dentes.
Fumei um cigarro que tinha gosto de cigarro. Um Gauloises com gosto de cigarro.

Sem êxtase.
Sem transcendência.
Sem edificação.
Sem história.

Com nicotina.

terça-feira, 6 de julho de 2010

De que vale uma revista de arte se lhe molham as páginas?

De que vale uma revista de arte se lhe molham as páginas? Há poucos dias me deparei com essa situação e o assombro que tomou conta de mim me fez lembrar aquele de Ferreira Gullar quando, ao sentir sua perna estalar indo atender ao telefone, se deu conta, bruscamente: “eu sou um osso!” Tal constatação é de uma agressividade, de uma violência, que nos faz parar de repente. Sentimo-nos perdidos diante desse espanto que faz as parcas sustentações do nosso mundo se romperem. Era muito cômodo para mim ter a revista inteira: suas páginas bem acabadas, seus desenhos minuciosamente traçados interagindo de maneira surpreendente com as poesias, contos e ensaios que durante os dias em que minha leitura lá se deteve me faziam alguém completo – embora a mera existência daquela revista me angustiasse profundamente, por me fazer pequeno diante dela, por me deixar fora dela, por me lembrar que existem muitas além dela, por me jogar na cara, como tudo o que me dá alegrias o faz, que meu tempo é curto, que tenho que fazer escolhas...

De todo modo, aquela revista de algum modo era um ícone do que eu queria ser: meio erudito, meio marginal, multicultural e, ainda assim, completo. Era uma centelha do que eu sonhava para o meu futuro, um guia que me dava forças para seguir em frente e tentar fazer do meu cotidiano confuso e desorganizado algo produtivo, para além da apatia que se abatia sobre meu sentimento de estar perdido. Em suma: aquela revista representava o que eu mais desejava: criar; e me dava os meios para isso (já que ela, em si mesma, era a expressão máxima da criação em várias linguagens).

Entretanto, após uma noite de chuva, meu mundo desabou. A água se infiltrou sorrateiramente pela minha mochila e encontrou a revista sem que eu me desse conta; só fui perceber a dimensão do ocorrido no dia seguinte, mas já era tarde demais. Senti-me violentado ao me deparar com aquelas páginas molhadas – e nem eram as páginas inteiras, apenas os cantos superiores direitos. Mas era o suficiente para me jogar na cara uma realidade difícil de engolir: uma revista de arte é só papel. E agora era papel molhado. Os desenhos já desbotavam, as folhas se contorciam em uma textura estranha talhada pela água, os espaços brancos, tão magistralmente trabalhados pelo projeto gráfico, já não tinham mais o seu lugar na obra, pois que se transformaram em um amarelo estranho... Não era aquilo, enfim, que eu havia desejado com tanta paixão durantes dias recentes e tão intensos.

Para mim, ver aquela revista de arte molhada foi como perceber que sou um osso: desesperador. É claro que eu poderia apenas comprar um exemplar novo, a revista não era tão cara assim, mas o encanto já estava desfeito. Por mais que tentasse, eu não conseguia amar a revista molhada com a mesma paixão com que eu a amava em seu estado perfeito, e tinha certeza de que não conseguiria amar nenhuma outra daquela forma, nunca mais. A diferença não era tanta, olhares distraídos não perceberiam nenhuma. E, no entanto, eu mal conseguia segurá-la sem ter vontade de fugir. Fugir de uma pergunta que eu não tinha coragem sequer de formular, mas que sabia intimamente qual era: seria eu capaz de dedicar a minha vida a uma coisa que poderia se estragar com tamanha facilidade? Porque o que se foi com a água não foi apenas o canto superior direito de um exemplar, mas o trabalho gráfico dedicado de dias, talvez semanas!, mais o esforço de produção de cada artigo, de cada poema... Eu sabia o que aquela revista havia sido, sabia como ela deveria ser, mas o que estava em minhas mãos era a completa negação disso tudo, a total impossibilidade de que isso tudo tivesse mesmo podido existir. E essa visão dotou-me de uma sobriedade, de um olhar mais cru e lúcido daquilo em que eu pretendia mergulhar, e me fez dar um passo atrás.

Aquela revista de arte molhada não era atraente aos meus olhos. Mais do que isso: mostrava-me a fragilidade em que a antiga atração residia. Vi-me mutilado, censurado. Se quisesse seguir adiante, deveria seguir com a noção das limitações daquilo que pretendia fazer, mas elas eram imensas, e não sei se conseguiria suportá-las ou fazer delas algo de bom e belo. Não sei, sobretudo, se conseguiria me aceitar pequeno (eu que me pretendia o dono do mundo!).

Sem conseguir resolver a questão, pensei em voltar para casa e prometer a mim mesmo que nunca mais seguraria uma revista dessas em minhas mãos. Seria o melhor: cortar o mal pela raiz. Sem revistas, sem angústias. Mas elas não saíram da minha cabeça e dos meus sonhos, e continuaram a chegar até mim de maneiras tão diversas que me vi obrigado a reconsiderar. Decidi, então, dar mais uma chance a mim mesmo: reuni-as, a todas, ao meu redor, e disse: “certo, se é assim que vocês querem, vamos conversar. Mostrem-me o que podem me oferecer que eu tento descobrir se caibo nisso, ou antes se isso cabe dentro de mim”. Pergunta difícil, que me levaria por estradas desconhecidas, com um horizonte sempre incerto... Mas que acabaria, por fim, me levando a algum lugar.

Às vezes, tudo o que eu queria é que minha vida fosse um caminho em linha reta, ou ao menos com placas bem grandes me indicando o rumo a seguir. Mas aí, devo admitir, revistas de arte já não seriam necessárias.

A

admiração

(inveja)

que Álvaro de Campos tinha por Alberto Caeiro

é a

admiração

(inveja)

que eu

tenho

por



S
idart
a

terça-feira, 25 de maio de 2010

Um meu tempo (sobre ter 20 ou 21 anos)

Vejo minha vida perdida. Vinte e tantos anos de uma ingênua alegria ao pensar no futuro (ora traçado, ora incógnito) e de uma imobilidade angustiante que, se de um lado é uma imagem forte que tenho de mim e que me rende ainda hoje belas palavras e grandes (assim me parecem) reflexões, de outro me joga na crueza da vida completamente desarmado, infantil, vacilante, tímido e exuberantemente torto – e digo torto aqui não com o romantismo que se tem atribuído tantas vezes à palavra, em referência a uma espécie de inadaptação gauche ao mundo do entorno que, ao mesmo tempo em que sofrida, não deixa de ser louvável e mesmo heróica; não, torto aqui quer dizer errado, por vezes ridículo e, no mais das ocasiões, suplicante diante dos olhos, das mãos e dos corpos dos outros que, quase sempre, nem me interessam tanto.

Vejo minha vida perdida quando vejo que tenho todo o tempo do mundo pela frente, mas que sempre tive e nunca fiz disso muito mais do que algumas grandes (assim me parecem e creio que de fato o são) reflexões. E daí que as tenha feito? Em que elas me ensinaram a mudar para ser, se não um heróico resistente frente à opressão do que é externo, ao menos feliz? E nem digo realmente feliz, pois friamente não acredito que isso exista, mas feliz de vez em quando. Porque mesmo os meus momentos de felicidade são doídos, já que cheios de culpa – culpa porque sei que vão acabar, culpa porque não os tive antes, culpa porque não consigo suportar o seu peso, enfim, culpa que vem da (e que gera a) imobilidade –, e hoje em dia pouco importa para mim que eu tenha explicações fabulosas sobre isso tudo, que descreva meus sentimentos de forma lírica e que, depois de uma poesia pronta, sinta o orgulho da obra acabada. E daí? Que me importa, se a felicidade, mesmo a que viria disso, me vem como um peso e nunca é realmente uma entrega?

Algumas ambições e promessas de grandes feitos (apoteóticos, diabólicos) ficam engastadas em meus sonhos, e gozo prematuramente numa expectativa que morre em si mesma. Mas nunca consigo passar dessa linha, que me separa da realidade – qualquer que seja o seu sentido; não busco ontologias, quero antes a superfície calma das verdades compartilhadas, como num acordo tácito. Não chego a viver essa minha realidade porque tenho minhas mãos sempre à frente, tentando tatear o futuro, enquanto meus pés, vacilantes, mal conseguem deixar o passado. E mesmo desistir do peso da reflexão pouco ajuda. Não nasci para a abnegação, para o desprendimento, ou antes não consigo evitar o jorro de idéias, de pensamentos, e o desespero que eles me causam (e, de todo modo, eu, orgulhoso, jamais aceitaria abandonar aquilo em que vejo o meu melhor).

Quando, pergunto a um Deus em quem creio, mas que não honro, poderei ultrapassar essa linha que me separa de mim, e ser um, enfim um? Talvez apenas quando a imobilidade tiver a potência de mudar o mundo. Mas até lá sigo tentando, sempre tentando, ainda que parado.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Companheira utopia: presente!

(ou fazendo as pazes com Maio de 68)

Quantos anos até acordar e ver que ainda há do que se orgulhar.
Apesar de tudo, ainda há do que se orgulhar.






Houve quem dissesse que nada daquilo restou
que o povo quedou mudo frente ao desengano, ao desespero

Houve quem dissesse que as vozes cantaram em vão
que os sonhos se desfizeram como névoa
que os mortos se foram por nada
que o sangue derramado foi como pó
no vento

Houve quem dissesse que meu mundo não tem jeito
que nunca teve
que não há o que fazer


Meu mundo

Ora, que tolice!

E eu que disse tanto, sobre tudo, fui dizendo cada vez menos, e disse menos, e disse quase nada, até que finalmente me calei.

Ora, que tolice.

O menino que cresceu crendo

desesperou-se
chorou
caiu

fugiu


E na fuga se encontrou com o que havia de mais verdadeiro em sua alma, mas continuou fugindo. E se viu, cada vez mais, e viu o mundo. E desesperou-se, e chorou, e caiu, e continuou fugindo.

Por quantos anos?
Não importa
O menino cresceu – que bom, que mau –

Viu o ridículo de tudo, e riu
mas riu de pavor, de desassossego
Riu porque estava órfão

Ora, que tolice...






Homens são só homens. E se conseguirem ser homens já é o suficiente.
Me julguei forte
Me julguei líder
Me julguei jovem
profético como todo jovem

Que forte, que líder!
Que nada.
Daria eu um milésimo da minha vida em nome de algo de incerto?
Sim? Não? Não importa tanto, há tanta covardia dos dois lados
Há tanta covardia em dizer sim à batalha
Tanta coragem em dizer não a uma luta – que não é minha!
(e que pode não ser minha por medo meu
por que haveria eu de ser herói?)


Agora olhando para trás, vejo que não foi tudo em vão
As lutas que não lutei, os sonhos que sonhei tardiamente e que não sonho mais
mas que batem fundo, tão fundo, que dói.






68 nasceu comigo em 89

e morreu aos poucos, ai de mim!, na crueza da maturidade (ora, que maturidade?)

que legado nos deixou!
a inocência juvenil (burra e inconseqüente)
as viagens lisérgicas
a liberdade do corpo

uma visão tosca de uma luta que nasceu abortada

Somos os mesmo? Claro que não, não poderíamos ser
Senti-me órfão e hoje vejo que não, que sou antes um filho ingrato
(ou pródigo? que não poderiam esses meus pais cobrarem-me
obediência ou gratidão, antes o contrário!
ou talvez pudessem, mas não me interesso por essa sua face
e não posso dar o que não tenho

não tenho gratidão, tenho assombro, espanto!, e lágrimas...)

Não poderia eu ter matado e enterrado esses meus pais (que são doutrinários, anti-doutrinários, libertários, ortodoxos, hipócritas acima de tudo)
Não poderia porque seu sonho é meu sonho
sou filho de suas utopias
que já são outras para mim (porque o mundo não gira mais em 2D)

E como é difícil pensar em 3D!
Mas é a única forma. A única forma de resgatar esse meu passado, essa minha ancestralidade e digeri-la, e fazer o meu presente
utópico?
burro?

Em 3D.






Mas a lembrança me aquece a alma, e gelo por aqueles que tiveram a coragem de fazer o que eu nunca poderia ter feito (embora acreditasse com todas as minhas forças que faria se pudesse)
Ou talvez fizesse, quem sabe?
Os tempos são outros, há que se pensar em 3D –

Mas há na memória
Na chamada dos mortos e sufocados
O peso da força dos nomes que teimam em resistir
para além do medo
para além da covardia
para além do esquecimento

e por esses pais, eu, filho pródigo, choro
e tiro de dentro de mim uma bravura ancestral e furiosa
uma força
que não imaginaria ter se não a sentisse em cada pulsão
de minhas veias

e grito os nomes daqueles que me fizeram quem sou
para além de todas as críticas
grito os nomes daqueles que me emocionam
simplesmente por terem existido
e por terem feito de mim
um sonhador
e do mundo
seu teatro

Companheira utopia: presente!

para sempre
que sou teu filho.






E da janela meio empenada, que teima em não se fechar, vejo as cinzas de uma vida que nunca foi minha. E me pergunto: de onde tiro forças para ficar aqui?
A resposta é esse sonho, esse sonho, tantas vezes sonhado e que, afinal de contas, faz todo o sentido do mundo.

terça-feira, 11 de maio de 2010

COISA

A vida às vezes se apresenta como um punhado de coisas a se fazer.
Eu vou e faço.

ME
CA
NI
CA
MEN
TE

Onde estou eu no meio disso?

Prazer? Há!

ME
NI
CO

Por que gozar, então?

quarta-feira, 24 de março de 2010

4 x 2 (haicais)

Primavera

O homem imóvel
acariciava o cão
O dia findava

(Ao fim do bocejo
peço um outro café
e sigo em frente)

Verão

Calor nas águas
A peixarada agitada
não podia nadar

(Meus pensamentos
se atropelam... Corre, corre
Vomito palavras)

Outono

Sozinha, a cigarra
exibia-se ao mundo
por medo da morte

(Se sou assim vulgar
posso sê-lo, não me julgais
Que procuro tanto...)

Inverno

Pro homem com o cão
de rosto barbado e sujo
só importam as nuvens

(O mundo todo?
Não quero mais. Já não tenho
todo o tempo do mundo)

terça-feira, 16 de março de 2010

Latência

O sêmen envolve o corpo do macho

O sêmen envolve o bico do peito

O bico do peito nu da fêmea

O bico da boca no sêmen

O rosto redondo calado

O rosto quieto na paz

Do conforto puro

Do conforto só

Só isso, fim

Só fim

Fim

For

Forma

Dá forma

Dá-me forma

Faz brotar no céu

Faz sair desse ventre

Faz vir na paz desse gozo

O que se cria no além-óbvio

O que urge para vir pelo buraco

Pelo buraco do pênis que jorra vida

Tão vida... que respiro, e planto, e nasce!

Tão leve... que brota!, e tão quase inevitável

Que é como não fosse meu, mas é tanto, tanto eu!

Eu, planta em fotossíntese, crio do inevitável. E respiro

(mais que respiro, vivo. Mais!, sou) o ar que fiz e que me faz

Sê-me ar

Semear

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010