segunda-feira, 20 de setembro de 2010

O Rio de Luzia

O que sempre me encantou na cidade do Rio de Janeiro foi o sincretismo completamente harmonioso que se dá entre o clássico e o moderno. Por isso, a despeito das belas praias da Zona Sul, da delícia melancólica do Subúrbio, da maravilha tropical e das belezas naturais que assombram estrangeiros desprevenidos, o Rio é, e o foi desde a infância para mim, o Centro da Cidade.

Caminhar pela Avenida Passos, margeando alguns sobrados e sebos de livros eternos; desbravar o Largo de São Francisco, onde o barroco de uma Igreja – e a irreverência de um gigante engastado na praça – convivem com um horizonte de concreto em constante mutação; passear pela Presidente Vargas e rodear o Campo de Santana (misturando, na retina, o verde das árvores, o cinza do asfalto e o azul do céu); ou andar a esmo por pequenas ruas como a do Ouvidor, de onde se vê, ao se dirigir o olhar para cima, as torres sagradas de andares infinitos que guardam as cidades do nosso tempo; tudo isso me dá a sensação de estar mergulhando em uma terra maravilhosa. Uma terra de nobres cavaleiros e donzelas de escrita romântica, mas também com uma sobriedade de ficção científica, que prescinde de efeitos especiais; terra que confere um traço de belle époque à Metrópolis de Fritz Lang.

E esse meu sentimento de síntese não se restringe à arquitetura do lugar: estende-se pelo espírito que se apreende nas ruas, misturando a devoção comovente nas igrejas (e como é mágica a alvorada de São Jorge!), a engenhosidade dos camelôs e os aparatos tecnológicos geniais encontrados na Uruguaiana – um dos maiores pólos do universo no comércio de tecnologia de ponta. Estende-se pelo cheiro vivo que nos embriaga um tanto nas esquinas e ruelas, nos copos de vidro riscado onde se depositam, religiosamente, café, cachaça e cerveja (a salvação ancestral de tantos dos nossos) e na frente dos quais se encontram grandes telas ligadas ao mundo pelos sinais místicos das tevês a cabo. Estende-se ainda pelos trens e ônibus que trazem, diariamente, homens e sonhos (de passado e de futuro), e que levam, no fim da tarde, os mesmos homens e alguns sonhos a mais ou a menos.

Assim é, para mim, o Rio de Janeiro: ida e vinda, ontem e amanhã.

E assim é Luzia.

Luzia me dá a impressão de ser uma Princesa Leia do século XIX, que veio parar na minha vida como um holograma, vendo em cada gesto do mundo a sua única esperança. É órfã, de pai e de mãe. Talvez por isso busque suas raízes em tudo o que vê. Escolheu sua história entre o popular e o erudito, entre o moderno e o parnasiano, entre o que chora e o que ri. E por apreciar tanto a liberdade, chegou mesmo a escolher sua data de aniversário, e decidiu que nasce a cada ano no domingo de carnaval, de modo que o dia, em si, varia como varia sua mente em desatino. Escolheu o carnaval por ser festa atemporal – ou antes pan-temporal –, por conter o tradicional e o informal dentro de si. Ah, e é claro, Luzia escolheu o Rio.

Foi num domingo de carnaval, no Rio, que vi Luzia pela primeira vez. Estava vestida toda de preto, com uma rosa amarela ajustada cuidadosamente entre o crânio e a orelha esquerda, sapatinhos de fivela e um par de óculos escuros prendendo os fios revoltos do cabelo já grisalho. Sobre um dos seios, um broche de madrepérola com uma cruz finíssima e, pendendo do pescoço, os fios curtos dos fones de um iPod, inútil num dia de festa. Sentada nas escadarias apinhadas de gente do Teatro Municipal, enquanto passava algum bloco pela Cinelândia, Luzia parecia combinar completamente com todo o entorno, cada coluna, cada detalhe do prédio. Luzia parecia, para mim, estar em sintonia com tudo o que havia no mundo, e no mundo que era a cidade. Amei-a desde esse dia.

Luzia me relatou sua trajetória enquanto caminhávamos por becos que me eram, até então, desconhecidos (não em sua forma física, mas em sua essência). Falava-me de seus sonhos de artista da vida – vida que para ela era como um happening – e eu me via cada vez mais envolvido naquele espetáculo. Contava-me a história de cada canto da cidade – os mesmos cantos que eu aprendera a amar desde criança –, enquanto eu escutava, maravilhado, aquelas narrativas, tão verdadeiras que só poderiam ter sido criadas pela sua cabeça.

Correu, então, até o Largo da Carioca, cheio até não poder mais de pierrôs, árabes e freiras, todos cobertos de confete. Apontou-me o céu, com um braço em posição vertical, e começou a girar no eixo, dando ao outro um movimento circular, como se brincasse de relógio. “Olha”, me disse, séria, “esse é o coração da cidade; todo o resto são artérias e veias que saem daqui”. E começou a rir tanto que me desconcertou. Descobri, naquele instante, que ali era o marco inicial de nossa jornada rumo ao desconhecido. O futuro, quem sabe, um futuro incrustado na pedra.

Emocionado, não consegui me conter: “ô, Luzia, me dá um beijo?”, pedi. Ela sorriu. Fez um carinho gostoso na minha cabeça e sumiu por entre a multidão que brincava o carnaval como ela brincava de viver.

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