terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Para que o ano novo possa ser realmente novo

De todos os méritos que poderia destacar para 2011, o mais importante me parece ser o retorno da crítica cortante ao establishment e do sonho de uma vida pautada em valores diferentes. A originalidade no conteúdo é pequena – sobretudo se retornarmos à década de 60 e relermos Sartre, Marcuse, Cohn-Bendit, os anarquistas, os situacionistas, e outros tantos istas... As formas são novas – ou, ao menos, releituras bem interessantes, integrando todas as mídias disponíveis na divulgação e na própria criação das alternativas à manipulação do concretíssimo “sistema”. Mas, acima de tudo, parece-me que parte (ainda que não a maioria) da juventude está querendo mostrar para quê veio, e a sociedade em geral parece questionar os ideais, outrora intocáveis, da acumulação capitalista – nesse aspecto, a crise se revela bastante benéfica.

A todo o momento, no entanto, me vem à cabeça a frase de Raoul Vaneigem: “aquele que fala de revolução sem mudar a vida quotidiana tem na boca um cadáver” (não tenho certeza de que ele tenha dito ESSA frase, que apareceu pichada nos muros de Paris em 68, mas na Arte de Viver para a Geração Nova ele escreveu coisa bem semelhante...). De fato, só é possível almejar uma mudança no sistema se a vida individual de cada um for transformada, naquilo que tem de mais valioso: sua relação com o outro. É absolutamente necessário enxergar o outro como parte de um mesmo organismo vivo, ao qual estamos todos integrados. É absolutamente necessário mudar a relação que temos com esse outro, pautando-a mais no amor (não o amor lugar-comum dos filmes românticos, mas o sentimento profundo de reconhecimento e respeito mútuo) do que na competição diária. É absolutamente necessário, sobretudo, que a mudança do mundo comece no ambiente doméstico.

De todo modo, a reflexão sobre o mundo que nos cerca e sobre as alternativas propostas a esse mundo não deve ser deixada de lado! Às vezes, parece que a realidade em que vivemos é natural e imutável, como se essa fosse a ordem natural das coisas, que pode até ser melhorada nos seus próprios parâmetros, mas não alterada substancialmente. Acredito que a realidade em que vivemos é uma construção histórica como qualquer outra, difícil de alterar como qualquer outra, mas não imutável, não natural e muito menos boa ou legítima! E o ano de 2011 veio nos mostrar isso de maneira bem enfática. Na verdade, tudo começa com a crise que explode em 2008 e que evidencia escandalosas contradições dentro de um sistema político, econômico e social que se pretendia perfeito – e unívoco! E a crise não é somente econômica, é política (já que os sistemas representativos mundo afora não representam mais grande parte das sociedades a que se reportam), e é ambiental, uma vez que a degradação sistemática da biosfera não mostra sinais de que vai diminuir, intimamente ligada que é ao desenvolvimento capitalista que temos, nos moldes atuais.

O que o ano de 2011 fez foi trazer à cena novos atores, novos cenários e novos roteiros. E nisso temos a tal da “Primavera Árabe”, os indignados de Madri, os rioters de Londres e a série de movimentos Occupy em todo o mundo, para citar apenas alguns exemplos. Grupos como os Adbusters e o Anonymous ganham cada vez mais espaço, sobretudo nas mídias alternativas, e as críticas, ainda que (que bom!) desordenadas, se avolumam na constatação de que do jeito que estar não dá para ficar!

Aos que criticam o Occupy Wall Street (ou o Ocupa Rio e o Acampa Sampa, como versões brasileiras, por exemplo), afirmando que eles não apresentaram nenhuma proposta clara nas críticas que fizeram, acredito que a resposta mais coerente seja a de que as velhas respostas não dão mais conta das novas realidades. Novas respostas virão, aguardem, mas a sua construção deve ser pensada em conjunto. Os Occupies são, em grande medida, um fim em si mesmos: a re-significação dos espaços públicos como espaços de discussão e denúncia não é argumento suficientemente plausível? É a partir daí que devem vir as novas respostas, a partir do diálogo com o outro... Se vai dar certo? Não sei... As ocupações em todo o mundo (as que resistiram) já demonstram sinais de exaustão e cansaço, a Primavera Árabe não garantiu a instalação de democracias plenas (e, de todo modo, quem afirmaria que a sua instalação resolveria o problema?), a juventude mundial parece estar se preparando para as férias... Mas, de todo modo, os ecos do que aconteceu durante esse ano permanecerão. Temos de saber lidar com esse legado e saber tirar dele o maior proveito possível.

Mas, para além da crítica à sociedade e das ações coletivas (sejam de sabotagem, sejam de desobediência civil ou de resistência pacífica), é necessário que pensemos outros aspectos de nossas vidas. É necessário que nossas idéias sejam coerentes com nossos gestos. É necessário, sobretudo, que superemos antigos preconceitos e pensemos na vida em sociedade e, mais do que isso, na vida em um organismo integrado como uma realidade à qual não podemos escapar e que, por isso mesmo, devemos zelar para que esse organismo sobreviva em harmonia. E, se somos parte integrante e fundamental desse organismo, zelar por ele é também zelar pela nossa vida individual, pela nossa saúde física, mental e emocional. Pela liberdade de se desfrutar de prazeres diariamente (sem abrir mão deles em nome de um quotidiano corrido ou de uma vida agitada, mesmo em nome de um ideal).

Viver os prazeres da vida, ter momentos de tranqüilidade e paz são direitos fundamentais do ser humano. Não somente os prazeres instantâneos que vêm com a novela das oito, com as atualizações do facebook ou com o pornotube, pensemos grande! Saiamos da frente do computador e vivamos a “vida real” em seus mínimos detalhes, em todas as suas possibilidades. É claro que em um mundo em que milhares de veículos de comunicação divulgam tudo ao mesmo tempo, é difícil escapar à lógica “informacional viciosa”. Acho, inclusive, que pretender escapar a ela é um engano: isolar-se, viver como um eremita no mundo em que vivemos é como andar com uma venda. É necessário estar informado, pelo máximo de fontes possível, para que possamos construir nossa própria opinião. Mas não podemos deixar que essa dependência nos domine. A vida real, em todas as suas possibilidades, nos espera! Descobrir como administrar o excesso (de trabalho, de informações, de estímulos) e como encontrar um tempo diário para estar conosco, para experimentar, talvez seja o grande desafio. Não tenho a resposta para isso, mas precisamos procurá-la!

Marcuse disse, certa vez, que “num mundo feio não pode existir liberdade”. Concordo completamente! Cabe a nós a dupla tarefa de enxergar beleza onde muitos não a vêem e de construí-la, quotidianamente, de ter a criação da beleza como um ideal, talvez o maior dos ideais. Espalhar beleza pelo mundo, provocar o espanto com os gestos mais simples, intervir no ambiente positivamente, criando, provocando... Ter essa ação direta no mundo como meta principal, e colocar-se como agente! Não podemos abdicar de nosso papel de agentes no mundo, não podemos aceitar a passividade como condição. Ajamos na direção da construção da beleza, que só pode existir com base no amor e nos sentimentos de reconhecimento e identificação com o outro.

Ajamos, também, com consciência da nossa total liberdade com o nosso próprio corpo, e do nosso direito inalienável de desfrutá-lo, de sentir prazer com ele da forma que acharmos melhor – desde que sem causar sofrimento ao outro –, sem moralismos ou códigos de conduta instituídos a priori por uma sociedade que não considera o prazer como princípio fundamental. Vivemos em um mundo em que trabalhar compulsivamente visando o acúmulo de bens é considerado atributo de caráter, enquanto o prazer é relegado às escassas horas de lazer a que temos direito (muitas vezes vividas com culpa por quem tem que produzir cada vez mais para alimentar o círculo vicioso do sistema). Invertamos a lógica: coloquemos o trabalho a serviço do prazer!

Busquemos, diariamente, a força para manter nossa vontade firme e coerente com nossas idéias. Que consigamos superar a apatia e a preguiça, agindo no dia-a-dia de maneira lúcida. Que nossos gestos sejam frutos de uma escolha consciente, não da inércia. Mas que reconheçamos também nosso direito de errar, e que possamos nos perdoar e recomeçar sempre, a cada dia, afinal não podemos nos cobrar uma perfeição que – que bom! – nós não temos. E, ainda assim, é fundamental que assumamos inteiramente a responsabilidade pelos nossos atos e idéias, ainda que eles possam, e devam, mudar.

Superemos as idéia de caridade e de altruísmo, que pressupõem uma separação fundamental entre os indivíduos, e incorporemos o valor da absoluta necessidade de uma vida conjunta. Somente assim poderemos olhar para o ano de 2011 e reivindicá-lo integralmente, em suas conquistas e em seus excessos, no que há nele de belo e de feio, mas sem termos nas bocas um cadáver, pois estaremos vivendo no nosso quotidiano o que sonhamos para o mundo. Para que 2011 não termine em 2011, mas também para que o ano novo possa ser realmente novo.


segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

GoTan ProJect

É extremamente necessário dar o play no vídeo antes de começar a ler.




Gotas granuladas como cogumelos
Gushing glass over gloves
Gastam grandes golfadas de glória
Gargantas grunhem: “gol!”




Há tango tatuado no torso tição
Torcem torrentes de tinta-treva
Por todo o tosco tronco
Que treme em “T”






Com pincel e poeira, pesco passos
Pingados no palco pelo pé suspenso
Sob o peito parco, um perfil pintado
(Preto no preto)




Anjos ginecológicos de Júpiter
Jorram, pelos gestos, jatos de giz
E jovens jurados por gíria mágica
Fingem ginga e jogo

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Constatação

Desde que Eva mordeu a maçã
(em gesto de grande heroísmo)

Teve gente maluca tacando fogo nas ruas
Teve gente mais maluca tacando fogo nas mentes

Teve gente safada tacando fogo nas partes
E ardendo gozando queimando por dentro

Ontem passei três horas pensando em sair de casa
Decidi por não sair, chovia e eu tinha sono

(F5 no screen... 7 atualizações no feed...)

Meu Deus, anos 2.000, o que foi feito da minha juventude?

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Os ferros d’Asbac

Imagem adaptada de:http://blog.iso50.com/wp-content/uploads/2007/11/iso50-vuela-thumb.jpg

Nos ferros d’Asbac correm vasos de aço
Onde toda circulação é desgaste
Da mesma repetição

Articulações em ângulos exatos
Deslizam os corpos de lá pra cá
E tornam ao repouso inicial, inúteis

A borracha crua reveste quase tudo
– E uns cantos e quinas expostos, sorrateiros
São ossos de concreto a manchar a pele preta

Na carne correm vasos de um sangue fervente
Osso, pele e nervos resistem ao trabalho
Músculos deformam-se conformados

O mundo inteiro aplaude a epopéia dos bravos
Buscando o trágico desejo
De serem exatos e inúteis, como a máquina

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Café Damasco

Sentado num café, em Curitiba, tomando minha xícara e fumando meu cigarro de maneira fingidamente despreocupada – ocultando o gênio angustioso que descasca as fendas do meu coração – leio o jovem Werther e me vêm à cabeça o desejo de escrever palavras vulgares como “angustioso” e um recordar sobre meus dizeres à namorada, no dia anterior: “viu essa pedreira, esse lago, essas árvores? Me incomoda o fato de nada disso me emocionar. O mundo não me encanta, não me embriaga, não me toca”. Pensando nisso, reitero minha convicção de que, a despeito de minha fé (que há, ainda que bruta), de meu desejo, da magia que vejo sair pelos poros do mundo – e que se dissipa pelas minhas mãos e nuca, se perde no emaranhado de meus vasos, antes de tocar meu coração –, a despeito de tudo isso, nunca virarei no Oxalá (êpa babá!).

O jovem Werther se recorda, com nostalgia, do tempo “em que espíritos benfazejos pairavam ao redor de fontes e nascentes”. Mas, no meu mundo de hoje, não há espaço para esse tipo de encanto. No meu tempo, a cidade sagrada se encontra, para sempre, esquecida por detrás das névoas. Os deuses de Merlin abandonaram a minha Britânia, e meu Rio de Janeiro – como Curitiba – não encena mais a figura de Deus caminhando sobre a face das águas. O cigarro Gauloises que fumo, como já escrevi há tanto tempo, é só um cigarro (sem êxtase, sem transcendência, sem edificação, sem história; com nicotina).

Sinto-me morno e, do romantismo, só me sobra a angústia – que cai sobre o meu peito como tabaco fumado às pressas, nas primeiras horas da manhã. À cabeça vem a música do compositor de Barcelona, e ele diz que no pequeno encontrou a força de seu mundo. Rio um riso condescendente e amargo. Amar o pequeno é destino para os que ainda conseguem viver a magia do mundo. O pequeno não lhes é morno, é total. Os ambiciosos que, como eu, almejam batalhas épicas e futuros grandiosos, não querem outra coisa que reviver o mundo encantado de seus ancestrais, oculto por detrás do véu de Maya. E quando se sentam num café, pretensamente despreocupados, fumando seu cigarro, tomando sua xícara, e planejando conquistar o mundo no dia seguinte, invejam profundamente a moça da banca de flores da esquina, para quem toda a manhã é o mesmo “bom dia”.

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Na mesa ao lado, executivos festejam a queda do dólar.

sexta-feira, 10 de junho de 2011

Cigarros, Nova York e galãs franceses feiosos

Foi com perplexidade, não com surpresa, que eu vi o Jornal Nacional anunciar, outro dia, que o estado de Nova York promulgou uma lei que proíbe o cigarro até mesmo nas praças e em várias das ruas da cidade! Aos que duvidam, é só acessar http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2011/02/nova-lei-em-nova-york-proibe-fumo-nas-ruas-da-cidade.html e conferir.

A lei só faz confirmar uma tendência que já se anuncia há um bom tempo: os fumantes estão se tornando párias sociais, vilões da sociedade, efetivamente marginais! Mas afinal, se podemos entupir nossas artérias com junk food, se podemos nos viciar cada vez mais em pílulas e cápsulas que prometem o paraíso, se podemos respirar o ar poluído e nos estressar no ritmo de vida alucinante das grandes metrópoles, e se ninguém questiona isso, porque o cigarro tornou-se o anti-herói do mundo moderno?

A lei promulgada em Nova York me parece ainda mais gritante pela tradição contra-cultural que a cidade inegavelmente assumiu, desde antes da década de 60. Berço dos hippies, lar dos beatniks, agora tobacco-free! Parece que a capital do planeta trocou o cigarro pelo “healthy way of life” (e, paradoxalmente, a “paz e amor” pelo stress...).

Não estou escrevendo para dizer que acho a lei um absurdo (embora eu ache); nem para defender o cigarro (que, apesar de fumante, eu não defendo de jeito nenhum). Estou escrevendo para desabafar: Nova York sem cigarro? Acho meio incompleto. Mesmo. Parece que algo está fora da ordem.

Vendo essa matéria, me lembrei de um conto que escrevi, há um tempo. Sem mais delongas tabagísticas, vamos a ele.

Cigarros, Nova York e galãs franceses feiosos

Andando na orla de Botafogo – contra o vento frio de um outono invernal, de todo atípico no Rio de Janeiro –, Rômulo procurava desesperadamente um isqueiro para acender o cigarro de filtro amarelo que esteve esperando, pacientemente, no bolso externo de sua maleta, por oito meses já completos. “Ok”, pensou, “estou me rendendo; onde eu acho algum fumante nessa cidade?”.

O ato, aparentemente de covardia (imagem pior à do fumante convicto, só aquela do ex-fumante que retorna ao vício!), escondia uma série de inquietações que iam muito além do dano biológico inegável que a fumaça do tabaco voltaria a trazer ao seu pulmão, boca e tantas outras partes do corpo. Procurando um fumante solidário pela orla da enseada, Rômulo se lembrava do sentimento de realização que experimentou no primeiro mês que passou sem a companhia de seu amigo longilíneo. E se, no segundo mês, seus amigos ainda desconfiavam de sua convicção, depois de três meses concluídos sem um único cigarro, fizeram-lhe uma festa na repartição, como comemoração ao seu feito. Ainda assim, passados oito meses, sua determinação em acender o cigarro era inabalável. Era um momento decisivo do qual não poderia mais fugir.

Sua vida vinha caminhando na mais perfeita ordem: esposa feliz, trabalho indo de vento em popa, filhos orgulhosos do pai de quem não mais precisavam ocultar a filiação na frente dos amigos (por vergonha de seus hábitos tabagísticos que, cada vez mais consensualmente, eram considerados vexatórios e próprios de marginais). Tudo corria muito bem até que, numa fatídica segunda-feira, Rômulo decidiu se estender, depois do expediente, a uma seção retrô de cinema francês, num desses espaços culturais alternativos que inundam o Centro do Rio. O motivo passava longe do filme em si: queria sair com Liza, estagiária da repartição – inteligente, apaixonada por Nouvelle Vague, seios fartos, louca por Godard, rosto angelical e, sobretudo, solteira.

Rômulo não sabia qual filme seria exibido, nem lhe interessava a informação. Entretanto, logo após o apagar das luzes, depois de letras esbranquiçadas anunciarem um “Acossado” um tanto tremido, um susto lhe fez pular da cadeira, de sobressalto. A imagem de um galã feioso da década de 60, de chapéu caído sobre os olhos e cigarro pendendo da boca, lhe fez voltar aos dezenove anos, nos seus tempos de cinemateca. Aquela cena, esquecida em sua memória, lhe voltou à mente de uma só vez, e Rômulo se lembrou do dia em que se encontrara, pela primeira vez, com aquele companheiro cancerígeno que se tornaria inseparável durante tantos anos.

Lembrou-se de que tragar a fumaça de seu Marlboro, na década de 60, era muito mais do que intoxicar o pulmão e tornar-se um pária social: era um hábito dos mais valorizados no seu círculo de amizades, um charme do qual nenhum rapaz que se pretendesse conquistador poderia prescindir. Mais do que isso, fumar era ser gente, entrar em sintonia com o mundo à sua volta – o cigarro servia de ponte, elo do fumante com o outro, com a rua, com a vida mesma. Que se danassem as complicações do hábito! Rômulo se lembrou do que o cigarro representava antes de ser perseguido como o vilão do mundo moderno, lembrou-se de quem ele era aos dezenove anos e pensou em quem era agora, já sessentão.

Lembrou-se de que seu maior sonho de juventude era conhecer a Manhattan de Woody Allen, capital do planeta, centro do Universo. Lembrou-se de que teria todas as mulheres dos seus sonhos em suas mãos (com dedos um tanto amarelados de nicotina) e de que ainda mudaria o mundo à la 1968, all you need is love! Mas tudo começaria em Manhattan, a Nova York de Cat Stevens, a cidade que nunca dorme – como ele nunca dormia aos dezenove anos.

O susto que Roômulo levou ao se ver na primeira cena do filme, cinqüenta e tantos anos atrás, o fez sair um tanto trôpego do cinema, abandonando Liza ao galã feioso francês que, provavelmente (agora ele tinha certeza), tinha muito mais a oferecer a ela do que ele. Andando a esmo pelas ruas, pensava em quem tinha se tornado, tantos anos mais tarde. Fez um balanço e o saldo era irremediavelmente negativo. Nunca fora a Nova York, meu Deus!, quem diria! Já levara os filhos à Disney, passara a lua de mel em Buenos Aires e, alguns anos depois, vira de perto os famosos canais de Veneza, mas a sua Nova York ele nunca conhecera.

Decidido a largar tudo – esposa, filhos, Liza, repartição –, Rômulo pegou o primeiro ônibus que viu pela frente, com destino à sua Manhattan, com quem já estava com dívida tão grande. Sabendo que o veículo não conseguiria transpor a distância dos anos que o separavam de seu sonho nova-iorquino, resignou-se a saltar na orla, buscando entender por que trocara Manhattan por aquela repartição, que o máximo que tinha a lhe oferecer era Liza. Subitamente sacou seu cigarro adormecido da maleta e o pressionou contra os lábios, mecanicamente. Parou de supetão.

Olhando para o ex-amigo, tentava lembrar-se do porquê de ter parado de fumar. Saúde, evidentemente. Pressão da família e dos amigos. Desejo sincero de não morrer de câncer, dali a alguns anos. Mas vendo o galã feioso do filme francês, de cigarrinho em riste, pensou se valia a pena a vida esterilizada que vinha levando havia já oito meses. A visão rápida de seu rosto galante de proporções mal dispostas o transportara de volta aos dezenove anos, e agora tudo o que importava era ir a Nova York. Mas a mera possibilidade de ir a Nova York sem um cigarro lhe apavora: não seria a mesma Nova York, não justificaria tantos anos de espera! Sem o seu Marlboro, definitivamente, mudar o mundo, all you need is love!, não seria possível.

E, no entanto, não havia um mísero fumante na orla de Botafogo, naquele frio de rachar. As bancas de jornal, fechadas, tampouco poderiam ajudá-lo. Nenhum isqueiro. Nenhum fósforo. Nada. Parecia que o mundo mesmo conspirava contra a sua missão, negando-lhe a rendição ao seu vício antigo. Mas Rômulo não poderia desistir. E não desistiu. Aceitou o fardo de acabar com o seu pulmão com a resignação de um Cristo que aceita o seu destino em nome de um bem maior. E saiu andando, pela Times Square, em plena Zona Sul do Rio de Janeiro, em busca do isqueiro que o tornaria o herói covarde que ele estava destinado a ser desde os dezenove anos.

sexta-feira, 3 de junho de 2011

segredo

aos que teimam em delegar-me
(e a todos) uma essência,
aqui vai um segredo
(sh! não conta pra ninguém):
não tenho espécie alguma, minha raça é cósmica
quando vocês vinham com o fubá
eu já voltava com o angu!
;-)

domingo, 22 de maio de 2011

Mural Grafite (à la Warhol)

De todo o Sol que deita na terra, escolho o laranja
E da laranja mordo a casta, chupo o suco e engulo o bagaço
Sentindo a vida me adentrar pela boca
Peço a meu pai Oxalá que me guarde são

É dele o branco do leite que tomo de um gole
(Dando-me força em oceano de puras cores)
Seu, o branco da paz alegre que trago detrás dos olhos
E o branco do sêmen que transformo em mundo

Não rejeito o cinza do qual fiz lar
Antes acomodo seu grisalho cansado no orgasmo das folhas verdes
– Epiléticas no mar dum vento azul –
E salpico de rosa tímido, olhares discretos a moças bonitas

Com bronze sobre pedestal suspenso, faço um homem, monumento
E seu ar de herói me faz rir como criança no youtube
¡Quem dera, meu Deus, pudesse
Pintar de roxo o seu nariz!

Trotando com vagar pela poeira dos confetes
Que fazem de todo o dia o mesmo Carnaval
Abraço sem pesar essa cidade arco-íris
No calor dum amor que teima inda em ser vermelho

quinta-feira, 5 de maio de 2011

Transbordo

semente gratuita, dando-se por instinto
presa em casca dura de matéria firme
lacrada por lei maior
faz favor! não desafio.

mas a vagem – de onde veio – a impele
a fazer-se também vagem
a fazer-se flor em meio à dureza do meio
(firme como a matéria da casca).

e se o lacre se rompe
salve-se quem puder
foi
fui
transbordo.

transbordo o universo que me faz todo surto
e choro
transbordo o homem que me faz todo peito
e empurro
transbordo a mulher que me faz todo colo
e embalo.

e transbordando, germino
e germinando, rebento
e rebentando, transbordo.

sou copo sem medida

segunda-feira, 4 de abril de 2011

Apoteótico

Disse que azul era azul e preto era preto
Fez uma confusão no céu das pessoas que passaram a amar
O vermelho
Dançou com passos de quetamina uma dança lenta
Com lindas meninas
Virgens
Achou que seu céu era bom – e disse: viva o meu céu!
Mas não viu que atrás de seu céu, havia o mundo
E no frisson do pavor que sentiu, estatelou-se no seu céu
E lá ficou, vagando todo Deus e doido.

sexta-feira, 25 de março de 2011

Poetando

Poeta pra mim é título mais bonito que o de doutor. E, como o de professor emérito, nunca deveria ser sugerido pelo próprio, ao menos num primeiro momento de uso. “Sou poeta!” Não se diz. É quase como dizer: “sou o cara”. Soa feio, esnobe.
Deixa a menina de cabelos castanhos e olhos amendoados te chamar poeta, assim, de bobeira, como quem não quer nada. Aí você ganha o dia (e, cá entre nós, você nem precisa escrever tão bem pra isso).
Ou então o casal humilde, ao reparar suas estranhezas, comentará: “não se avexe não, vice, que esse é poeta.” Tá explicado, não é não dona Matilde?
Pode ser mesmo que um grande acadêmico declare, com pompa e circunstância: “caro colega, o senhor é poeta dos bons, digno do trono de Machado”. Desse passe longe, faz favor, que de poeta mesmo não há de ter nada.
Há, ainda, os amigos que te chamam poeta por troça, ou gosto, ou por admiração e carinho a você. Esses, guarde com carinho no coração, mas não leve muito a sério, pra não ficar metido a besta.
Mas quando um desconhecido ler um poema seu e disser: “gostei disso, quem é o poeta mesmo?”, pode se gabar, você é o cara. Guarde isso com você, como um segredo, uma delícia só sua.
E volte para sua vidinha normal, abençoando três vezes a santa alma que te fez figurar, por um segundo, no célebre panteão dos vagabundos iluminados.

terça-feira, 15 de março de 2011

Um amigo invisível

Tenho um amigo que só quer ser invisível
Entre tudo que é visto, dito, tocado
Um amigo que ama demais
Que só quer sentir o gosto dos outros
Na sua boca
Seca
               de álcool
               de tabaco
               de desejo

Tenho um amigo que brinca de roda
Segurando pelas mãos
Todas as crianças do mundo
Girando na roda como roda na gira
A paz

Um moleque que brinca nas ruas
Ingênuo
E, ao mesmo tempo, um homem
Lidando com a parte que lhe cabe na herança
(Tão completo que não cabe em si mesmo
E tão incompleto
Que busca no mundo, a todo instante,
O seu espelho)

Tenho um amigo que casou o Sol com a Lua
E nesse beijo prometido e inesperado
Nasceu colorido num mundo em preto e branco

Um amigo urso

Tenho um amigo urso
Um amigo que é só um sorriso
Grande grande, como é grande o indizível
Grande grande, como é grande o seu abraço

               (o abraço que a bisa da amiga
               tanto evitou que ela recebesse)

Tenho um amigo urso, de passadas largas
Gestos amplos, cara redonda
E, mesmo assim, ssssuaaaveee
Bonachão como o São Pedro de Bandeira

Tenho um amigo que descobriu, eu acho
A face mais pura da felicidade
(E a escondeu num lugar só dele
Deixando-a transbordar pelos seus dentes)

Um amigo ao avesso

Tenho um amigo que nasceu ao avesso
Ao avesso do provável
Ao avesso do possível
Ao avesso do indicado
Ao avesso de mim

Deram-lhe um coração com a idade errada
E ele aprendeu a amar de cima
A ver o mundo de cima

Mas o que queria mesmo era poder circular entre os dois mundos
               o de cima
               e o de baixo

Tenho um amigo que se fez sábio
Engolindo com avidez os segredos do universo
Mas faltou-lhe descobrir o pulo do gato
– Que por baixo de sua corcunda, há os olhos de um falcão
E seu coração ancião ainda tem muito que amar –

Tenho um amigo que sempre estranho
Por olhá-lo e ver-me nu

(Que como qualquer avesso sincero
É o meu reflexo mais nítido
               em medos, em sonhos
               em dores, em fé)

Mas longe de ser invés só meu
É a síntese antitética do mundo todo
Porque como São Paulo, com sua beleza torta
É o avesso do avesso do avesso do avesso

Vintedois

Parte 1 – Vontade Primal

Tô cuma vontade primal de viver meus quase vintedois anos.
Não de jogar tudo pro ar. Não, isso não.
De manter-me numa ordem que monto como lego. Mas de injetar nessa ordem um pouco mais de emoção, menos técnica.
Amar. Que doidera isso!
Fazer, criar do meu sangue, mas sentir o que crio com o prazer de compartilhar esse mesmo troço com o mundo, mesmo que o mundo se restrinja a um par de olhos interessados e bola-de-gudemente brilhantes.
Re-vo-lu-ção.
Botar pra quebrar mesmo.
Vintedois, afinal.

Parte 2 – A Nara de Copa

Queria ir a Copacabana ver Nara. Ver Nara? Ou ver nada?
A princípio ver nada. Mas ver Nara seria bem melhor, sem dúvida.
Eu diria para Nara: “Vem Nara, me salva, por favor.
Nara, vem, beija minha boquinha, Nara, Narinha!, deixa eu gozar dentro, deixa amor, nada de mal vai acontecer”.
Queria ver Nara.
A Nara de Copa.

sexta-feira, 4 de março de 2011

Haikai Bas-Fond

Ressaca moral
Um excelente lugar
para se compor.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Canibal

Chupei a boca do gozo (e o suor me escorria pelo peito e pela barriga
                                  a saliva se fazia nova na boca nova
                                  e eu me fazia líquido na boca de Deus)

Chupei a boca do gozo e me espantei: com o gozo mesmo que se fazia meu
                                                         super-homem, super-tudo
                                                         eu menino em gozo puro

Chupei a boca do gozo – e minha barba encharcada revelava fios ruivos
                                    vermelhos de desejo
                                    vermelhos do vinho que sorvia de boca nova

                 bebendo carne nova e sangue novo
                 tragando com voracidade a matéria crua que chupava
                 alcancei o oco abaixo do esôfago
                 o preenchi com o calor das bocas em transe
                 e me desfiz no suor primitivo
                 que já me inundava por completo

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Meu sangue

Meu sangue é latino, contemporâneo e universal.
Meu sangue cansa, pensa e pulsa.
Meu sangue sangra por poros que descubro com espanto.
Meu sangue é errante, sozinho. É uma gota só.
De genética imemorialmente solitária.
Que sufoca gritos, que quer gritar.
Que pulsa e pensa.
Mas cansa.
Meu sangue jorra em rios que correm para além do Rio, para além de Havana, para além de Santiago, para além do que questiona, para além do que conforma, para além do que se desespera, para além da busca, da iluminação, da paz, para além da iconoclastia, para além da unidade, para além da pluralidade, para além de todas as eras, para além de todos os lugares.
Meu sangue circula em copos – e corpos.
Meu sangue ama o periférico (mesmo que, por vezes, o espie de uma sacada).
Meu sangue dispersa em tragos, ordinários e culpados.
Meu sangue é aristocrata, embora rompa a minha carne e seja o outro também.
Meu sangue tenta, tenta.
E circula mal entre os copos e corpos, e traga com culpa, e não sabe direito quem é ou por que é.
Meu sangue ainda não conseguiu.
Mas tenta, tenta.

Porque ainda não conseguiu descobrir o que é. Mas é latino, contemporâneo e universal.
E pulsa, e pensa. Mas cansa.
Porque ainda não conseguiu descobrir o que é.
Mas tenta, tenta.

O pecado original do poeta

Disse a matrona do Ocidente, no auge de sua formosa pompa, quadrada e soturna debaixo de abóbadas góticas: “tu nasceste, homem impuro, sob o pecado original; nasceste em dívida, pague-a em vida, espie tua culpa nesse vale lágrimas”.
E os homens nunca tiveram paz, pois que haviam sido já concebidos sob a mancha do estigma que carregariam por toda a vida.

E depois de tantos séculos de rebeldia e libertação, quem diria!, o poeta ainda está em pecado. Nasce já sob a maldição de não ter lido nada, de não ter visto nada (nada do quando há para ser visto sob este céu). E a cada dia, cada linha lida equivale a 30 dúzias de milhões de linhas novas escritas. A dívida só aumenta, só aumenta (já disse uma vez Fernando Sabino: “desgraçado daquele que vê, há de pagar pelo crime de ter visto pouco”). E não há o que faça o poeta quitá-la: ele tenta, busca, se espanta... Perde seus dias em angústia e vícios tentando conhecer – intransitivamente – e sabendo que nunca o fará por completo, e como criar o novo quando não se conhece o que foi e o que é? Que método faz do poeta o ser onisciente que pode ser absolvido da maldição? Que bênção o livra dessa terrível sina, dando-lhe o direito de criar de barro fresco, sem repisar eternamente as ruínas de Roma? O que faz, meu Deus!, o que faz o poeta se livrar de vez do ranço de erudição que o prende ao pecado original no qual nasceu sem nem ao menos se dar conta? Quando a vida do poeta deixará de ser uma corrida?

Será que absolvição vem no percurso diário, de suor e labuta?
Será que vem na negação da missão, quando o poeta desiste de seu fardo e resolve fazer de sua própria vida um grande poema?
Será que ela o chega no paraíso, depois de pesadas, numa grande balança de ouro, os prós e os contras de sua obra?
Será que entendi tudo errado?
Serei eu um não-poeta?