terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Para que o ano novo possa ser realmente novo

De todos os méritos que poderia destacar para 2011, o mais importante me parece ser o retorno da crítica cortante ao establishment e do sonho de uma vida pautada em valores diferentes. A originalidade no conteúdo é pequena – sobretudo se retornarmos à década de 60 e relermos Sartre, Marcuse, Cohn-Bendit, os anarquistas, os situacionistas, e outros tantos istas... As formas são novas – ou, ao menos, releituras bem interessantes, integrando todas as mídias disponíveis na divulgação e na própria criação das alternativas à manipulação do concretíssimo “sistema”. Mas, acima de tudo, parece-me que parte (ainda que não a maioria) da juventude está querendo mostrar para quê veio, e a sociedade em geral parece questionar os ideais, outrora intocáveis, da acumulação capitalista – nesse aspecto, a crise se revela bastante benéfica.

A todo o momento, no entanto, me vem à cabeça a frase de Raoul Vaneigem: “aquele que fala de revolução sem mudar a vida quotidiana tem na boca um cadáver” (não tenho certeza de que ele tenha dito ESSA frase, que apareceu pichada nos muros de Paris em 68, mas na Arte de Viver para a Geração Nova ele escreveu coisa bem semelhante...). De fato, só é possível almejar uma mudança no sistema se a vida individual de cada um for transformada, naquilo que tem de mais valioso: sua relação com o outro. É absolutamente necessário enxergar o outro como parte de um mesmo organismo vivo, ao qual estamos todos integrados. É absolutamente necessário mudar a relação que temos com esse outro, pautando-a mais no amor (não o amor lugar-comum dos filmes românticos, mas o sentimento profundo de reconhecimento e respeito mútuo) do que na competição diária. É absolutamente necessário, sobretudo, que a mudança do mundo comece no ambiente doméstico.

De todo modo, a reflexão sobre o mundo que nos cerca e sobre as alternativas propostas a esse mundo não deve ser deixada de lado! Às vezes, parece que a realidade em que vivemos é natural e imutável, como se essa fosse a ordem natural das coisas, que pode até ser melhorada nos seus próprios parâmetros, mas não alterada substancialmente. Acredito que a realidade em que vivemos é uma construção histórica como qualquer outra, difícil de alterar como qualquer outra, mas não imutável, não natural e muito menos boa ou legítima! E o ano de 2011 veio nos mostrar isso de maneira bem enfática. Na verdade, tudo começa com a crise que explode em 2008 e que evidencia escandalosas contradições dentro de um sistema político, econômico e social que se pretendia perfeito – e unívoco! E a crise não é somente econômica, é política (já que os sistemas representativos mundo afora não representam mais grande parte das sociedades a que se reportam), e é ambiental, uma vez que a degradação sistemática da biosfera não mostra sinais de que vai diminuir, intimamente ligada que é ao desenvolvimento capitalista que temos, nos moldes atuais.

O que o ano de 2011 fez foi trazer à cena novos atores, novos cenários e novos roteiros. E nisso temos a tal da “Primavera Árabe”, os indignados de Madri, os rioters de Londres e a série de movimentos Occupy em todo o mundo, para citar apenas alguns exemplos. Grupos como os Adbusters e o Anonymous ganham cada vez mais espaço, sobretudo nas mídias alternativas, e as críticas, ainda que (que bom!) desordenadas, se avolumam na constatação de que do jeito que estar não dá para ficar!

Aos que criticam o Occupy Wall Street (ou o Ocupa Rio e o Acampa Sampa, como versões brasileiras, por exemplo), afirmando que eles não apresentaram nenhuma proposta clara nas críticas que fizeram, acredito que a resposta mais coerente seja a de que as velhas respostas não dão mais conta das novas realidades. Novas respostas virão, aguardem, mas a sua construção deve ser pensada em conjunto. Os Occupies são, em grande medida, um fim em si mesmos: a re-significação dos espaços públicos como espaços de discussão e denúncia não é argumento suficientemente plausível? É a partir daí que devem vir as novas respostas, a partir do diálogo com o outro... Se vai dar certo? Não sei... As ocupações em todo o mundo (as que resistiram) já demonstram sinais de exaustão e cansaço, a Primavera Árabe não garantiu a instalação de democracias plenas (e, de todo modo, quem afirmaria que a sua instalação resolveria o problema?), a juventude mundial parece estar se preparando para as férias... Mas, de todo modo, os ecos do que aconteceu durante esse ano permanecerão. Temos de saber lidar com esse legado e saber tirar dele o maior proveito possível.

Mas, para além da crítica à sociedade e das ações coletivas (sejam de sabotagem, sejam de desobediência civil ou de resistência pacífica), é necessário que pensemos outros aspectos de nossas vidas. É necessário que nossas idéias sejam coerentes com nossos gestos. É necessário, sobretudo, que superemos antigos preconceitos e pensemos na vida em sociedade e, mais do que isso, na vida em um organismo integrado como uma realidade à qual não podemos escapar e que, por isso mesmo, devemos zelar para que esse organismo sobreviva em harmonia. E, se somos parte integrante e fundamental desse organismo, zelar por ele é também zelar pela nossa vida individual, pela nossa saúde física, mental e emocional. Pela liberdade de se desfrutar de prazeres diariamente (sem abrir mão deles em nome de um quotidiano corrido ou de uma vida agitada, mesmo em nome de um ideal).

Viver os prazeres da vida, ter momentos de tranqüilidade e paz são direitos fundamentais do ser humano. Não somente os prazeres instantâneos que vêm com a novela das oito, com as atualizações do facebook ou com o pornotube, pensemos grande! Saiamos da frente do computador e vivamos a “vida real” em seus mínimos detalhes, em todas as suas possibilidades. É claro que em um mundo em que milhares de veículos de comunicação divulgam tudo ao mesmo tempo, é difícil escapar à lógica “informacional viciosa”. Acho, inclusive, que pretender escapar a ela é um engano: isolar-se, viver como um eremita no mundo em que vivemos é como andar com uma venda. É necessário estar informado, pelo máximo de fontes possível, para que possamos construir nossa própria opinião. Mas não podemos deixar que essa dependência nos domine. A vida real, em todas as suas possibilidades, nos espera! Descobrir como administrar o excesso (de trabalho, de informações, de estímulos) e como encontrar um tempo diário para estar conosco, para experimentar, talvez seja o grande desafio. Não tenho a resposta para isso, mas precisamos procurá-la!

Marcuse disse, certa vez, que “num mundo feio não pode existir liberdade”. Concordo completamente! Cabe a nós a dupla tarefa de enxergar beleza onde muitos não a vêem e de construí-la, quotidianamente, de ter a criação da beleza como um ideal, talvez o maior dos ideais. Espalhar beleza pelo mundo, provocar o espanto com os gestos mais simples, intervir no ambiente positivamente, criando, provocando... Ter essa ação direta no mundo como meta principal, e colocar-se como agente! Não podemos abdicar de nosso papel de agentes no mundo, não podemos aceitar a passividade como condição. Ajamos na direção da construção da beleza, que só pode existir com base no amor e nos sentimentos de reconhecimento e identificação com o outro.

Ajamos, também, com consciência da nossa total liberdade com o nosso próprio corpo, e do nosso direito inalienável de desfrutá-lo, de sentir prazer com ele da forma que acharmos melhor – desde que sem causar sofrimento ao outro –, sem moralismos ou códigos de conduta instituídos a priori por uma sociedade que não considera o prazer como princípio fundamental. Vivemos em um mundo em que trabalhar compulsivamente visando o acúmulo de bens é considerado atributo de caráter, enquanto o prazer é relegado às escassas horas de lazer a que temos direito (muitas vezes vividas com culpa por quem tem que produzir cada vez mais para alimentar o círculo vicioso do sistema). Invertamos a lógica: coloquemos o trabalho a serviço do prazer!

Busquemos, diariamente, a força para manter nossa vontade firme e coerente com nossas idéias. Que consigamos superar a apatia e a preguiça, agindo no dia-a-dia de maneira lúcida. Que nossos gestos sejam frutos de uma escolha consciente, não da inércia. Mas que reconheçamos também nosso direito de errar, e que possamos nos perdoar e recomeçar sempre, a cada dia, afinal não podemos nos cobrar uma perfeição que – que bom! – nós não temos. E, ainda assim, é fundamental que assumamos inteiramente a responsabilidade pelos nossos atos e idéias, ainda que eles possam, e devam, mudar.

Superemos as idéia de caridade e de altruísmo, que pressupõem uma separação fundamental entre os indivíduos, e incorporemos o valor da absoluta necessidade de uma vida conjunta. Somente assim poderemos olhar para o ano de 2011 e reivindicá-lo integralmente, em suas conquistas e em seus excessos, no que há nele de belo e de feio, mas sem termos nas bocas um cadáver, pois estaremos vivendo no nosso quotidiano o que sonhamos para o mundo. Para que 2011 não termine em 2011, mas também para que o ano novo possa ser realmente novo.


2 comentários:

  1. Lindo texto, linda crônica de um ano em tanto

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  2. Se tivesse enviado a alguma revista, teria sido publicado! Muito legal e coerente.

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