segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Canibal

Chupei a boca do gozo (e o suor me escorria pelo peito e pela barriga
                                  a saliva se fazia nova na boca nova
                                  e eu me fazia líquido na boca de Deus)

Chupei a boca do gozo e me espantei: com o gozo mesmo que se fazia meu
                                                         super-homem, super-tudo
                                                         eu menino em gozo puro

Chupei a boca do gozo – e minha barba encharcada revelava fios ruivos
                                    vermelhos de desejo
                                    vermelhos do vinho que sorvia de boca nova

                 bebendo carne nova e sangue novo
                 tragando com voracidade a matéria crua que chupava
                 alcancei o oco abaixo do esôfago
                 o preenchi com o calor das bocas em transe
                 e me desfiz no suor primitivo
                 que já me inundava por completo

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Meu sangue

Meu sangue é latino, contemporâneo e universal.
Meu sangue cansa, pensa e pulsa.
Meu sangue sangra por poros que descubro com espanto.
Meu sangue é errante, sozinho. É uma gota só.
De genética imemorialmente solitária.
Que sufoca gritos, que quer gritar.
Que pulsa e pensa.
Mas cansa.
Meu sangue jorra em rios que correm para além do Rio, para além de Havana, para além de Santiago, para além do que questiona, para além do que conforma, para além do que se desespera, para além da busca, da iluminação, da paz, para além da iconoclastia, para além da unidade, para além da pluralidade, para além de todas as eras, para além de todos os lugares.
Meu sangue circula em copos – e corpos.
Meu sangue ama o periférico (mesmo que, por vezes, o espie de uma sacada).
Meu sangue dispersa em tragos, ordinários e culpados.
Meu sangue é aristocrata, embora rompa a minha carne e seja o outro também.
Meu sangue tenta, tenta.
E circula mal entre os copos e corpos, e traga com culpa, e não sabe direito quem é ou por que é.
Meu sangue ainda não conseguiu.
Mas tenta, tenta.

Porque ainda não conseguiu descobrir o que é. Mas é latino, contemporâneo e universal.
E pulsa, e pensa. Mas cansa.
Porque ainda não conseguiu descobrir o que é.
Mas tenta, tenta.

O pecado original do poeta

Disse a matrona do Ocidente, no auge de sua formosa pompa, quadrada e soturna debaixo de abóbadas góticas: “tu nasceste, homem impuro, sob o pecado original; nasceste em dívida, pague-a em vida, espie tua culpa nesse vale lágrimas”.
E os homens nunca tiveram paz, pois que haviam sido já concebidos sob a mancha do estigma que carregariam por toda a vida.

E depois de tantos séculos de rebeldia e libertação, quem diria!, o poeta ainda está em pecado. Nasce já sob a maldição de não ter lido nada, de não ter visto nada (nada do quando há para ser visto sob este céu). E a cada dia, cada linha lida equivale a 30 dúzias de milhões de linhas novas escritas. A dívida só aumenta, só aumenta (já disse uma vez Fernando Sabino: “desgraçado daquele que vê, há de pagar pelo crime de ter visto pouco”). E não há o que faça o poeta quitá-la: ele tenta, busca, se espanta... Perde seus dias em angústia e vícios tentando conhecer – intransitivamente – e sabendo que nunca o fará por completo, e como criar o novo quando não se conhece o que foi e o que é? Que método faz do poeta o ser onisciente que pode ser absolvido da maldição? Que bênção o livra dessa terrível sina, dando-lhe o direito de criar de barro fresco, sem repisar eternamente as ruínas de Roma? O que faz, meu Deus!, o que faz o poeta se livrar de vez do ranço de erudição que o prende ao pecado original no qual nasceu sem nem ao menos se dar conta? Quando a vida do poeta deixará de ser uma corrida?

Será que absolvição vem no percurso diário, de suor e labuta?
Será que vem na negação da missão, quando o poeta desiste de seu fardo e resolve fazer de sua própria vida um grande poema?
Será que ela o chega no paraíso, depois de pesadas, numa grande balança de ouro, os prós e os contras de sua obra?
Será que entendi tudo errado?
Serei eu um não-poeta?