domingo, 20 de dezembro de 2009

Rapaz

– Rapaz...!
– Espere um instante, estão me chamando. Chamam-me a todo momento, mas não sei quem é. Estou há um tempão procurando, e agora a voz está ficando mais baixa e não sei mais onde está quem me chama.
– Mas rapaz...
– Espere, você, depois conversamos! Agora estou procurando a voz que me chama. Estou indo, vasculhando, estou vagando há horas por esses corredores e não consigo achar. Já acendi mais de 15 cigarros, mas parece que quem está me chamando não fuma, ou tem seus próprios cigarros. A voz continua me chamando e quando eu chego perto é um silêncio... Será que é brincadeira?
– Rapaz, camarada –
– E agora eu fico cansado de subir e descer essas escadas que não servem senão para me fazer ofegar, e ofegando é que eu não vou conseguir encontrar a voz, ninguém gosta de gente ofegante, fico ridículo quando ofego, mas se ela continua me chamando é porque ela nem se importa com isso, não é? Ou talvez eu não esteja entendendo nada, mas que a voz me chama, isso ela me chama, e o pior é que eu sei quem pode ser, ah!, como eu sei quem é!, ou talvez fosse mais correto dizer quem são, pois a voz não precisa vir de um só. Mas dentre esses que eu sei quem são, quem será que me chama mesmo, será que eu estou ouvindo esse chamado, será que a cafeína, ou o álcool, estão me deixando louco? Será que, pelo contrário, eles me absolvem de uma loucura que vem de mim? Eu não consigo ficar aqui, só posso passar com essa voz que me chama, ela é a minha redenção, depois que eu conseguir ME ENCONTRAR COM ELA, quando eu conseguir ME FUNDIR COM ELA, e já SÊ-LA completamente, quando isso tudo acontecer, estarei redimido, serei eu, mas não esse eu que ofega, mas o eu daquela voz que é quem eu quero ser, e se ela me chama é porque ela quer também. Ou talvez eu queira, e já não sei mais se a voz é importante (mas é tão importante que dói!), e já não sei mais se o importante é continuar procurando (o que me conforta), e já não sei mais se o importante é não querer ouvir mais nada, e aí não ouvir – o que corta tão fundo que... Merda, meus cigarros acabaram!
– Rapaz, eu tenho cigarros se você quiser.
– Quieto, agora parei de ouvir! Cadê, cadê você, voz que é a única razão de eu existir aqui? Cadê você?, para que eu me desespere e continue atrás, sempre atrás, sem saber se é você, se são vocês, se um dia eu chegarei a fazer parte dessa voz, se um dia cantarei como num coro em uníssono com vocês, que são você, e tudo é um, e eu estou fora! Grita, grita que eu preciso ouvir, grita alto, que se não eu morro, e nem fumar mais faz sentido, que já tusso e sinto algo em meu pulmão que me diz que sem você não dá pra tragar! Grita! Isso! Mais alto, estou ouvindo, cadê você? Me chama, seja eu!, ou deixe-me ser você em tudo, para tudo, independente de qualquer coisa! Estou ouvindo, a voz está alta! Espere um instante, estou correndo, estou correndo o mais rápido que posso, estou VOANDO, ALTO!, mas ainda é devagar, grita mais, mais, que eu estou chegando, chegando! Estou vendo a porta, você está do outro lado, eu sei, eu sinto! Estou mais calmo, posso até andar, a voz continua alta, a voz está firme, a voz não foge mais. Ahh! Como é bom saber que agora eu vou te encontrar! Vou saber quem você é e, mais que isso, vou saber como é ser você! Espera aí, o que é isso? E agora, essa porta fechada, ora que brincadeira uma porta fechada! Quem será que trancou isso? Alguém, por favor, essa porta está fechada! A-bre, por-RA! Porque isso de fecharem a porta? Será possível que ninguém sabe que as portas TÊM de estar abertas porque EU quero entrar? Alguém, por favor, essa porta está fechada! Abre, ABRE!

...

...

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Twilight zone

Twilight zone, you look around and see the mess.
Twilight zone, you keep on falling more or less.
Twilight zone, the symbol tower faded down.
Twilight zone, the king of nowhere loses his crown.

A silence makes itself loud heard.
Congeals the air and stops the bird.
While watching the fate of the search of a life.
While carrying no brother, no friend and no wife.

Twilight zone, for the rebuilding’s out of thought.
Twilight zone, the perfect shining path was caught.
Twilight zone, the mists of mystic, mythic mass
At twilight zone, attempt to save itself from death.

But nothing escapes, the world undone.
Why cards, why hands, why books, why throne?
What’s out and what’s safe from the present’s new will?
What’s up and what’s now, when the now is not real?

Twilight zone, no more tomorrow to deceive.
Twilight zone, no self-made destiny to believe.
Twilight zone, no hand above to guide you through.
For at twilight zone, there’s no more future, only you

(2007)

domingo, 25 de outubro de 2009

Revelação

Quando beijei a sua boca, depois de levantar da cama, tinha gosto de café doce.

Não suporto que se adoce o café, mas aquele gosto naquela hora era diferente... era perfeito.

Alguns instantes depois, quando tomei um gole do café adoçado (já frio) que tinha sido esquecido na estante, não consegui encontrar o mesmo sabor. Aquele era sabor de momento. Sabor de mulher. Um sabor absolutamente completo que se traduzia no café e no açúcar.

Nunca tinha sentido aquilo antes. Gosto de não-quero-mais-parar-pra-pensar-em-nada e de quero-viver-o-resto-da-minha-vida-nesse-instante. Sorvi tudo quanto pude daquele beijo, chupei cada gota de saliva e passei a língua nos lábios quando enfim nossas bocas se separaram.

E me dei conta da coisa mais óbvia do mundo:

O amor tem gosto de café doce.

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Anatomia

Corpo, mil vezes simulacro, mil vezes cantado, dissecado, torturado.
Corpo meu de me ver nele e não saber quem eu sou.
Corpo que, vejo, tem braços, pernas, assim, desse modo, mas que olho e custo a acreditar que sou.
Que estico o braço e não tenho domínio sobre a coisa minha, ela me domina, ela é eu.
Corpo, de ele me descer um arrepio pela espinha torta, me fazer tremer os dedos de cantos roídos, me falsear as pernas que agüentam meu peso mas não minha incerteza, me botar o rosto tenso olhando pra frente, sem piscar os olhos, piscando os olhos, sem saber como olhar, olhando, somatizando, incorporando, liberando THC e adrenalina (endocrinando-me).
Corpo de eu o construir. Desenhar meus braços, desenhar meus músculos, o contorno do meu rosto. Artista inglório que sou, que a obra sai sempre aquém
Artista curioso, mas preguiçoso que sou; que se deslumbra!, mas não se disciplina.

De cor, de forma e de lógica
De não lógica contida no absurdo do delírio
É feita cada fibra de febre e pulsão.
– não invólucro, mas unidade transcendental
(que não sou somente em mim, mas na possibilidade de ser tudo)
e o ar que entra em meu pulmão, que teimo em intoxicar, é também o que me faz a tal coisa viva
e a luz que deita em minha pele é também o que me faz carne e o que me faz além da carne

“Estou construindo meu corpo”, pensei, mas é mais que isso! Meu corpo transborda, mas transborda demais. Transborda para as paredes do meu quarto e não consigo controlar a ânsia de controlar no corpo-além-corpo o que não consigo no corpo-coisa-minha, e já nisso faço uma distinção que, sinto!, não existe, mas que se impõe na prática me mostrando que para ser é necessário mais do que nascer...
E minhas veias pulsam de medo!
Meus músculos se contraem
Minha vista dói e treme, e as noites mal dormidas me revelam que o corpo-coisa-minha e o não-corpo-coisa-minha precisam estar em conjunção, mas os dois estão desregulados – e nisso separo de novo coisas que, sinto, são inseparáveis.

Corpo, que percorro com os olhos, tentando achar onde estou no emaranhado
Corpo, que sinto com as mãos, que são, para mim, a porta para o que há do lado de fora
Corpo, que descubro aos poucos e, se domino nada ou quase nada, conheço na paixão e nas necessidades mais primitivas; que moldo para me fazer e que, nisso, sempre me desconstruo mais e mais
Corpo que, como diversas partes encaixadas, forma organismo integrado e, como organismo que é, não vive senão como coisa uma (mas que, ao transbordar, me desconcerta)
Corpo, que vejo, toco, encontro, entendo(?)

E que não marco
(que me marcar é perigoso
marcar é saber demais)

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

La Negra sembradora


Muere La Negra
Y se nos va cantando
Que el tiempo no puede callar
Quien como cigarra vivió

Muere y nos deja un poquito más huérfanos
Pero nos abraza en el aire en el que ahora reposa

Duerme Negrita,
Y vestida de aire, ¡mira!
Que los pajarillos de la eternidad
Hacen una ronda a tu lado
Y nos vamos todos, caminando, cantando y jugando
Pronto a tu lado

¡Y habrá música!
¡Y cantarás!
Y tu fuerza es tanta que te oiremos desde aquí
Y desde aquí seguiremos, juntos, por la tierra de uno
En la que quisiste vivir
La que tú misma construyó

Y tu ternura es tanta que en los días más difíciles
Sabremos cómo seguir cantando
Que tu canto, más que todo
Es la vida en nuestras venas

Tú, que cantaste mi patria,
Tú, que cantaste mi pueblo,
Tú que hablaste mi lengua, y todas las lenguas del mundo
Que amaste la libertad y por ella no te has dejado callar;

Pienso que entrarás en el cielo
Con voz de relámpago
Y antes de la risa, y antes del llanto,
Te van a aplaudir

Y desde aquí escucharemos
Como el sonido de la lluvia que cae para todos
Y sabremos que están de pié
Y te saludan como mujer, madre y hermana

Muere La Negra
Y se nos va cantando
Cantemos con ella, amada obrera
De guitarra en puño, pecho abierto y ojos sencillos
Que si se calla el cantor,
Muere de asalto la vida entera

Pero Aya Marcay Quilla la nos traerá de nuevo
Y que cada día desde hoy sea esto día sagrado
Que no olvidemos lo que nos dijo,
Que no olvidemos por qué vivió
¡Que sembremos!

Que el tiempo no puede callar
Quien como cigarra vivió.

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Desintoxicação

Desintoxicar.
Período de substituição de narcóticos.
É fabuloso pensar que se pode tudo. Acho essa idéia absolutamente encantadora.
Posso acreditar simplesmente que posso parar de pensar. E aí eu posso parar de pensar.
Mas o esforço para isso se dá em várias frentes.
Não há como simplesmente apertar o stop e chegar ao Nirvana. Para isso temos que negociar conosco. Substituir gradualmente os narcóticos, o que é um problemão.
Desintoxicar é justamente isso: negociar. Dizer ‘eu abro mão disso, para chegar aqui’.
Não é uma questão de juízo de valor, é uma questão de conforto. Está confortável com os seus narcóticos? Ótimo, eles lhe servem muito bem. Não está? Troca.
Mas desintoxicar é também abrir mão de segurança.
Abrir mão da segurança que certas ações cotidianas nos dão.
Está bom? Não. Quer trocar? Não! (porque assim eu me conheço, sei aonde vou chegar e os meus limites)
Desintoxicar não é se limpar.
Ninguém está limpo.
Não existe isso de estar limpo.
É mudar para outro narcótico que tenha um efeito mais pertinente. Mas não sei se estou preparado para perder o efeito do anterior.

Estou em período de desintoxicação. Confesso que está brabo.
Tendo a acreditar simplesmente que posso parar de pensar, mas isso é o ideal. Para chegar lá tenho um longo trajeto pela frente.
Trocando os martelos que batem incessantemente na minha cabeça (mas que assim, de alguma forma, me fazem uma melodia harmoniosa), pela ausência dos martelos.
Me perguntei se um narcótico podia ser uma ausência.
Acho que não pode.
O narcótico é, e tem de ser trocado por algo que também é.
Senão eu não seria mais. Acho. Não sei.
Talvez esse fosse o caminho do Nirvana, mas eu, ao menos eu, não posso trocar o que é pelo que não é.
Então estou substituindo por coisas que são.
Substituindo pelo fazer prático. Pela degustação descompromissada.
Mas é claro que não é fácil. Nenhuma desintoxicação é fácil.
Me pego diariamente batendo com força os martelos pesados que soam alto e me impedem de seguir, e de sentir, mas que me dão um consolo em cada marretada furiosa.
Mas estou largando.
Trocando.
Turning on, tuning in and dropping out.
Ahh

Maldito superego!

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Quando fui a Tókio

Poucas coisas revigoram tanto como sentar na varanda num início de noite chuvoso e ficar olhando a mistura de prédios, árvores e fios que compõe o cenário do meu mundo externo.
Sinceramente, e sem medo de parecer ridículo: me senti em Tókio. Não sei por que (nunca fui a Tókio e imagino que lá o caos se sobressaia muito mais do que esse ambiente de calma interrompido por esparsas buzinas e ruídos de vozes, que falam dentro dos apartamentos e fora, saindo da farmácia, do banco, da padaria... Tampouco parece que esse meu quadro se relacione com o ambiente ajardinado das cerejeiras em flor que figura entre os lugares comuns das representações da Tókio antiga. Mais precisamente, acredito que tenha me sentido num subúrbio de algum mangá melancólico.).
Não importa exatamente. O certo é que me senti bastante revigorado, e até feliz. Isso pode parecer contraditório com a melancolia própria da mistura “noite chuvosa” mais “prédios, árvores e fios”. É mesmo, mas para quem sentiu esperança após ver Dogville, isso não é exatamente estranho.
Senti-me revigorado por toda a conjuntura. Da completa desorganização interna, misturada à tristeza de não saber suportar a solidão subjacente a certas situações que, de maneira incômoda, se repetem mais do que alguém gostaria, e somada ainda à dorzinha aguda do medo de perder algumas doses de companheirismo diário, disso tudo, sentado na beira da varanda, me veio a música. E me veio a fé.
E, sem vergonha alguma (o que é absolutamente raro), cantei. Cantei muito, mais do que pensei que quisesse cantar. E mastiguei cada palavra que cantava como um mantra, ou uma prece, ou ainda uma certeza de que há algo para além da solidão, do medo, das noites chuvosas, das árvores, dos prédios e dos fios. Cantei, mais do que para espantar, para consolidar essa solidez de sentimento que, sem sentir em sua completude, edifico em um outro mundo, mundo das idéias, mundo dos sentidos, das certezas ou da simples necessidade de crer, mundo dos edifícios construídos para abrigar a eles mesmos (que não vivemos lá!), mas nos quais repousam as nossas mais íntimas aspirações.
E quando esses edifícios estão formados, nossas vidas ganham até um sentido, um sentido maior que a gente. E isso revigora.
Sentado na varanda, olhando a massa absolutamente harmoniosa à minha frente (harmoniosa como nada mais pode ser), me senti bem.
Conheci Tókio.

domingo, 16 de agosto de 2009

O Coito Interrompido pelo Abutre

Era terça-feira de manhã e o coito era. Era toda a possibilidade de um coito ser, era luz e era deleite. Terça feira de manhã e nada mais importava além do coito e do nascimento que se seguiria ao coito. Nascimento de uma linda montanha depois de alguns vales verdes, e depois da montanha mais luz e rios, e toda uma nova vida viria depois da mão na nuca e do último suspiro acompanhado da última lambida de sal no pescoço do último homem e da última terra no único momento que interessava.

Mas ocorre que um abutre, invejoso de toda aquela possibilidade de felicidade, fez mostrar suas garras e seu hálito fétido por sobre a massa de alma e matéria que pariria o mundo. Esticou suas unhas bem afiadas e começou por cortar o fino fio de paz que unia as duas almas que agora eram uma só. E cortou a paz pelo fio da confiança o que inevitavelmente levou à hesitação. A hesitação era o refletir sobre o que não era para ser refletido, era o buscar o medo saindo da não-consciência. Da hesitação, o abutre conduziu a massa, já disforme, pelo vale da incerteza e da impossibilidade, até a própria incapacidade de parir a beleza em meio à carnificina que se mostrava no horizonte, trazida, cortante e mortal, no bico do pássaro atroz.

Aqui o abutre tinha que agarrar bem forte com suas garras, pois a massa já pesava e o vôo tornava-se difícil. Pesava de culpa, um imenso tumor infeccionado e em constante auto-alimentação que puxava para baixo com força imperiosa, mas o abutre estava acostumado, e quanto mais o tumor crescia mais alto ele voava, ou talvez descesse fundo e fundo, era impossível saber, pois a escuridão que se instalava em volta impedia que se visse qualquer coisa.

Antes de o tumor explodir, o motor do que era ainda girava, e a massa unida no coito, que ainda lutava, buscava insana a montanha, a linda montanha depois dos vales verdes, mas já estava contaminada, e o vôo do abutre dilacerou o último fio de confiança e verteu gozo, que enfim chegou, em cuspe vazio, num delírio mórbido feito com dor e por obrigação, no vislumbre de que o sacrifício pelas migalhas da montanha valia a farsa. Mas em vez de vida era um gozo estéril, um cuspe falsamente quente, pois que feito na culpa, no medo e na incerteza, e nenhuma montanha nasceria disso. Mas era tudo que o abutre podia trazer.

O abutre não era mau, era sua natureza de ave carniceira, e alma ou corpo jamais pensara que abrigava a ave num ninho escondido, e que para chegar à montanha seria preciso vencê-la. Pois a ave fora criada antes do primeiro beijo, antes do primeiro toque, antes da primeira insanidade. O abutre existira desde sempre, espiava, invejoso, os primeiros passos dados em direção à montanha, e esperou o primeiro gesto em falso para atacar, mortal e certeiro, alimentado durante anos pelos lugares pelos quais agora conduzia o monstro tornado bolor infértil.

Acontece que o estranho objeto que agora carecia mesmo de vontade própria, mas que já fora duas almas unidas numa só, conhecia todos esses lugares, como não conheceria? Se fora ele mesmo que construiu ao longo de tantas vidas a imensidão de terror que agora tinha à frente? Se talhara detalhadamente cada pedaço do penhasco que, impossível de ser visto, era sentido com a força de uma sentença de morte? Como não saber que aquilo tudo vinha dele?

E como não ter nele mesmo a saída para aquilo tudo? Como não saber domar o abutre que ele mesmo tinha criado e alimentado, ainda que fugisse das conseqüências desse ato e fingisse ignorá-lo? Como não poder converter o tumor em seio, e o cuspe em jorro de sêmen e leite, vida e alimento, e alcançar enfim, no coito que vinha sendo, a montanha linda depois dos vales verdes?

E, no entanto, tudo que havia era o silêncio.
Era terça-feira de manhã e já não importava mais se o coito era ou não era (mas era).

Da advertência de Helena

Em advertência a uma nova edição de seu romance, Machado de Assis nos escreve:

“Esta nova edição de Helena sai com várias emendas de linguagem e outras que não alteram a feição do livro. Ele é o mesmo da data em que o compus e imprimi, diverso do que o tempo me fez depois, correspondendo assim ao capítulo da história do meu espírito, naquele ano de 1876.
Não me culpeis pelo que lhe achardes romanesco. Dos que então fiz, este me era particularmente prezado. Agora mesmo, que há tanto me fui a outras e diferentes páginas, ouço um eco remoto ao reler estas, eco de mocidade e fé ingênua. É claro que, em nenhum caso, lhes tiraria a feição passada; cada obra pertence ao seu tempo.

M. de A.”

Essas palavras soam particularmente fortes para mim. Quantas coisas escrevi que, hoje, relendo, parecem-me tolas, sentimentais, inconseqüentes, pretensiosas ou absurdamente vagas. Ridículas às vezes. E mesmo assim, que carinho tenho por muitas dessas coisas! Daí a vontade de não perdê-las, o medo de que elas fiquem esquecidas pelos cantos, e a postagem espasmódica, esporádica (e talvez esquizofrênica) de textos que foram muito pra mim – mas que talvez não sejam mais eu no tempo de hoje – nesse blog. Como historiador melancólico que sou, de todo modo, não poderia negar-lhes seu valor. E de qualquer forma, trazê-las à tona é revelar para mim mesmo as portas de um presente que eu tento entender (sem muito sucesso aparente).
E é assim que muito do que eu escrevo é uma maneira de tentar conciliar o que eu fui com o que eu sou. É tentar dar um sentido a tudo o que fiz e vivi, e tentar acreditar que tudo isso valeu à pena nem que seja porque me rendeu um poema. Mas se esse poema não tem valor, onde eu encaixo o meu passado? Então, eis que me surge Machado e acalma temporariamente minhas angústias de quem não tem com o que mais se preocupar (ou tem e mesmo assim insiste em se preocupar com as coisas erradas, por teimosia infantil).
Por isso, peço que não me culpeis pelo que me achardes romanesco, pelos meus momentos de spleen (graças a Deus razoavelmente ultrapassados), ou por tantos “outros eus”, mais ainda eu, que expus, exponho ou ainda venha a expor. Não me culpeis, ainda, pela escrita em um estilo literário inventado (ainda que não original) e que teima em aparecer em minhas páginas, virtuais ou não: a retrospectiva. Ela é uma forma que tenho de tentar me encontrar enquanto ainda não me achei de verdade.

segunda-feira, 6 de julho de 2009

Hoje cedinho

Hoje acordei cedinho.
Deixei o café coando no filtro enquanto sentava na varanda e ficava vendo o dia aparecer por trás dos prédios de tijolos laranja de um condomínio particularmente grande a alguns metros da minha casa.
Quando fui pegar uma caneca, o café já estava meio frio, mas nem importava porque a manhã estava meio quente. Acendi um único cigarro que nem consegui fumar até o final e fiquei olhando pro céu que já estava completamente claro e sem nenhuma nuvem.
Tomei mais um pouco do café, agora gelado, e fui pro banho. Peguei qualquer roupa no armário, meti a mochila nas costas, saí pra rua, e me senti completamente feliz.
(mentira)

Ontem

Ontem eu peguei um jornal com alguns artigos interessantes sobre cultura e as formas de manifestações artísticas e culturais na contemporaneidade, e como tudo isso parece ser abandonado pelas políticas públicas, e que, mesmo assim, os jovens (como?!) persistem em organizar-se em grupos para discussões estéticas e produção de arte, e que isso é super importante e fundamental – e tudo isso me mostrando como, de qualquer forma, eu estou alheio a essa coisa toda.
Aí eu resolvi, por decreto, que me tornaria o maior expoente de um movimento artístico-literário cujo nome ainda não sei, mas que revolucionaria o pensar-arte imbricando-se nas mais variadas formas de divulgação midiática, interação cognitiva, hermenêutica performática e holismo sócio-apreensível, tornando o espaço externo e interno um só invólucro de experiência transcendental que, possivelmente, possibilitaria o alcance do nirvana ou do gozo primal no tempo do “partilhar com” e do “partir-se em” unindo a tudo e a todos no único laço verdadeiramente possível de se estabelecer entre a cosmogonia e a individualidade, a saber, a pertença à posição fetal (enquanto modelo físico e enquanto modelo psíquico-espiritual).
Mas aí me deu um sono...

quarta-feira, 1 de julho de 2009

Clarice não queria

A edição especial da Piauí que será distribuída de graça na FLIP do dia primeiro ao dia cinco de julho (período de duração da feira) contou com um concurso literário homenageando o ilustrador Al Parker: os participantes deveriam escrever uma história original com base em uma de suas ilustrações. Resolvi participar do concurso e escrevi um conto/crônica que acho que ficou bem bacana. Qual não é a minha satisfação (puts, que frase feita...) quando descubro, hoje, que o meu conto foi o vencedor do concurso! Já tinha decidido postá-lo aqui no Mi Esperma Urgente, só faltando-me tempo para fazê-lo... Pois bem, faço-o agora:



CLARICE NÃO QUERIA



Clarice não queria ser famosa. Clarice não queria carros, brilhantes ou vestidos de alta-costura. Clarice não queria cachorros de raça tomando conta do jardim com fonte e esculturas de estilo neoclássico e, sobretudo, Clarice não queria Ricardo.

Ricardo era uma espécie de homem à moda antiga, gentil e discreto. Trabalhava geralmente de tarde, jantava por volta das 20 horas, não fumava mais de meio maço por dia e não dormia sem um cálice de licor. Ricardo não bebia nada alcoólico além de licor. Ricardo não gostava de charutos. Ricardo não ria, a não ser em raras ocasiões, e não falava além do necessário. Ricardo não amava Clarice.

Clarice vivia de sua imagem. Vivia dos vestidos e brilhantes que ostentava sem orgulho. Vivia das colunas sociais e dos sorrisos marcados pelo batom carmim. Vivia do delicado lápis preto em torno do olho. Vivia por viver. Clarice não vivia.

Ricardo oferecia jantares em que Clarice sempre estava: carmim, lápis, vestido e brilhantes. Nos jantares, Clarice ria elegantemente - nem alto demais, o que seria indelicado, nem baixo demais, o que demonstraria timidez -; comia pouco, bebia não mais que alguns goles. Nos jantares, Clarice não fumava.

Clarice não queria viajar com Ricardo. Clarice não queria andar de avião, fazer malas, comprar roupas. Clarice não queria ter que voltar e jantar e sorrir, e viajar de novo, fazer malas, pegar táxis. Ricardo corria as cidades em busca das melhores oportunidades e quase não olhava os lugares por onde passava. Clarice nem lembrava que passava por aqueles lugares.

Clarice sabia que Ricardo sabia. Ricardo nunca disse que sabia. Clarice sentou-se no chão do quarto, apagou o cigarro. Deitou-se, enfim. Queria chorar, mas não chorou. Ricardo entrou. Clarice olhou Ricardo. Ricardo queria passar, Clarice deu passagem. No dia seguinte haveria festa, mais licor e mais brilhantes. Seria o dia mais importante do ano, o dia mais aguardado por todos. Ricardo queria que tudo fosse perfeito. Clarice levantou-se do chão, tirou o lápis preto, o vestido, o batom.

Clarice não queria.

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Gostaria de agradecer a galera da edição pelos os comentários generosos!

"Não foi apenas com desassombro que João Gabriel da Silva Ascenso enfrentou o desafio brutal de urdir uma historieta memorável a partir da ilustração ao lado, selecionada, diga-se, com bom gosto exemplar, pelo corpo de eruditos sustentados por piauí. Não. João Gabriel da Silva Ascenso também pôs em campo o talento que o Senhor, na Sua infinita munificência, lhe concedeu. A evidência não mente: estamos diante de um fenômeno maior. Não espantará se, ano que vem, esta feira literária dedicar mais de um colóquio à sua obra, que até lá, espera-se, já será mais extensa do que a de Josué Montello.*

* A bem da verdade, esta introdução foi escrita antes de escolhermos o vencedor. Por questões de prazo, deixamos em aberto apenas o nome do escriba. Diante do resultado, precisamos confessar: assim como Clarice, também não sabemos direito por que premiamos esse texto. Talvez por estarmos perplexos. Não se fala de outra coisa por aqui. Por todas as opalas de Teresina, que diabos Clarice sabia que Ricardo sabia mas Ricardo nunca disse que sabia? Precisamos saber. Quanto a Clarice, vão aqui algumas sugestões: divórcio, Lexotan, Frontal, Vicodin, Wellbutrin e, se nada disso der certo, eletrochoque. Ou um chacoalhão muito bem dado."

Fica aqui meu obrigado à Piauí e a todas as opalas de Teresina. Quanto às sugestões, fiquem certos de que Clarice tomará nota!

domingo, 7 de junho de 2009

eu-web

Me fazer digital.
Me procurar e me descobrir nas páginas da web.
Me construir nas páginas da web.
Entre fragmentos de poetas, músicos, amigos, entre imagens, quadros, fotos, seqüências, ausências.
Construir um eu-web.
Será eu?
Será um espelho?

(1º semestre de 2009)
PS: Os pronomes "me" ficam
exatamente onde eles estão.

Sobre os momentos vividos

Acontece uma coisa esquisita com os momentos que eu vivo.
Enquanto eles são vividos, eles são todos iguais. Os sentimentos em torno deles são bastante próximos. As emoções, as angústias, se não iguais, bastantes semelhantes.
Mas isso não faz da minha vida um grande déjà vu, porque, depois de algum tempo, esses momentos ganham contorno, textura e cheiro. Cada um com características físicas bem distintas dentro de mim, e apenas um perfume, um aperto no coração, um som, podem despertar a lembrança de um momento bem único.
E eles ficam assim, coisificados, sólidos na minha cabeça, cada um em uma parte diferente da estante, e sua lembrança é tão forte que pode cortar fundo.

(200[7?][8?])

Fantasia

A felicidade vem em gotas, com um sorriso, um gesto.
Sempre penso nos fatos, nos encontros, brincadeiras, amores. Sempre penso nos sorrisos, nas piadas, nas ações futuras prontas. Imagino-as como serão integralmente. Deliro ao imaginá-las.
Sempre penso num futuro que eu planejo. E aí vem o desespero: essas coisas nunca vão acontecer desse jeito!
Melhor seria se não pensasse nelas. Talvez assim elas pudessem acontecer da mesma forma que teria planejado um ausente futuro do pretérito.


(200[7?][8?])

Sobre as poesias perdidas

A palavra surge de um gesto, um momento.
O verso vem correndo à mente...
E não se pode dizer: está feito.
Nada está feito (ainda)

O que não se faz, se perde.
O verso largado é como o material refugado:
Lixo
Nunca vai ser mais do que o que poderia ter sido se...

E não adianta voltar.
Ele se foi mesmo. Pra sempre.
É um pedaço seu que não deixou registro nem foi trabalhado.
Quem sabe pra mostrar que a vida não precisa de registros.
Quem sabe pra entrar na eternidade da parte inexplorada de sua alma.
Quem sabe assassinato da preguiça (ou do stress rotineiro do século XXI)

(12/10/2007)

domingo, 26 de abril de 2009

Reticências

Segredo do mundo pintado na mente
Segredo da mente marcado no rosto
No canto dos olhos (discreto desgosto)
No trem que já parte, sem ti, reticente

O ônus marcado daquilo que é teu:
Tua voz estridente que nunca saiu
O mundo que, lindo, teu olho não viu
Perdido naquilo que não conheceu

Se flutuas vadio, à contramão
Na desesperança atenta um querer
Num trago, já findo, tua solução

Ou o dia te engole sem mais nem porquê
E se te resta um chão, adéqua-te ou não
Que a história segue com ou sem você...

(alguns momentos em conjunção)

Alguns porquês perdidos no tempo.

Criar alguma coisa nova (necessidade primeira), mexer no que ficou guardado...
É vontade de reunir tudo que eu fiz, medo de jogar qualquer coisa fora – pois tudo é sentimento, então tudo sou eu.
Quero ver o mundo, sentir o cheiro dos bares e das flores, quero ser a América, e isso sou eu.
Quero viver o mundo, bebê-lo, fumá-lo, quero cair em cada um dos lugares comuns do mundo.
Quero o violão e a guitarra, e todos os passos do tango.
Quero todos os livros que não consigo ler porque o tempo de ler é grande demais para os viveres do mundo... Bobagem, que cada viver é eterno e vale a pena.
Quero conseguir canalizar meu fluxo interno e ser o infinito, cada parte do infinito, uma de cada vez.
Quero assumir que nem tudo tem que valer a pena.
Quero, quero...
E querer guardar tudo é não querer jogar o futuro fora...
Bobagem, que o futuro começa depois dessa linha (mas todas as outras foram tudo até agora).

(algum momento de 2008)

terça-feira, 14 de abril de 2009

Aí, mais uma vez, o autor sentou na escrivaninha pra recomeçar.
O frutos do recomeço anterior estavam perdidos.
Mais uma vez soprou a poeira, limpou as teias de aranha.
Tentou se lembrar do que foi, tentou ler o que estava escrito, tentou criar de novo.

E escreveu.

Juntando tudo, ele escreveu.
Ficou uma merda, mas ele gostou.

Pegou o que havia de velho, juntou com o que havia de novo, e num primeiro momento ficou meio aturdido com o pavor que lhe causava aquele livro "meio em branco" na sua frente.
Sentiu-se Deus. Era Deus. Mais uma vez.

Lembrou-se, então, daquilo que havia rabiscado, tempos antes, num pequeno pedaço de papel enquanto voltava para casa de madrugada:
'E se um dia pensar que minhas vísceras estão secas, vê meus olhos.
Vê meus olhos rasgando os teus olhos, no prenúncio de um grito que há de vir.'