domingo, 25 de outubro de 2009

Revelação

Quando beijei a sua boca, depois de levantar da cama, tinha gosto de café doce.

Não suporto que se adoce o café, mas aquele gosto naquela hora era diferente... era perfeito.

Alguns instantes depois, quando tomei um gole do café adoçado (já frio) que tinha sido esquecido na estante, não consegui encontrar o mesmo sabor. Aquele era sabor de momento. Sabor de mulher. Um sabor absolutamente completo que se traduzia no café e no açúcar.

Nunca tinha sentido aquilo antes. Gosto de não-quero-mais-parar-pra-pensar-em-nada e de quero-viver-o-resto-da-minha-vida-nesse-instante. Sorvi tudo quanto pude daquele beijo, chupei cada gota de saliva e passei a língua nos lábios quando enfim nossas bocas se separaram.

E me dei conta da coisa mais óbvia do mundo:

O amor tem gosto de café doce.

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Anatomia

Corpo, mil vezes simulacro, mil vezes cantado, dissecado, torturado.
Corpo meu de me ver nele e não saber quem eu sou.
Corpo que, vejo, tem braços, pernas, assim, desse modo, mas que olho e custo a acreditar que sou.
Que estico o braço e não tenho domínio sobre a coisa minha, ela me domina, ela é eu.
Corpo, de ele me descer um arrepio pela espinha torta, me fazer tremer os dedos de cantos roídos, me falsear as pernas que agüentam meu peso mas não minha incerteza, me botar o rosto tenso olhando pra frente, sem piscar os olhos, piscando os olhos, sem saber como olhar, olhando, somatizando, incorporando, liberando THC e adrenalina (endocrinando-me).
Corpo de eu o construir. Desenhar meus braços, desenhar meus músculos, o contorno do meu rosto. Artista inglório que sou, que a obra sai sempre aquém
Artista curioso, mas preguiçoso que sou; que se deslumbra!, mas não se disciplina.

De cor, de forma e de lógica
De não lógica contida no absurdo do delírio
É feita cada fibra de febre e pulsão.
– não invólucro, mas unidade transcendental
(que não sou somente em mim, mas na possibilidade de ser tudo)
e o ar que entra em meu pulmão, que teimo em intoxicar, é também o que me faz a tal coisa viva
e a luz que deita em minha pele é também o que me faz carne e o que me faz além da carne

“Estou construindo meu corpo”, pensei, mas é mais que isso! Meu corpo transborda, mas transborda demais. Transborda para as paredes do meu quarto e não consigo controlar a ânsia de controlar no corpo-além-corpo o que não consigo no corpo-coisa-minha, e já nisso faço uma distinção que, sinto!, não existe, mas que se impõe na prática me mostrando que para ser é necessário mais do que nascer...
E minhas veias pulsam de medo!
Meus músculos se contraem
Minha vista dói e treme, e as noites mal dormidas me revelam que o corpo-coisa-minha e o não-corpo-coisa-minha precisam estar em conjunção, mas os dois estão desregulados – e nisso separo de novo coisas que, sinto, são inseparáveis.

Corpo, que percorro com os olhos, tentando achar onde estou no emaranhado
Corpo, que sinto com as mãos, que são, para mim, a porta para o que há do lado de fora
Corpo, que descubro aos poucos e, se domino nada ou quase nada, conheço na paixão e nas necessidades mais primitivas; que moldo para me fazer e que, nisso, sempre me desconstruo mais e mais
Corpo que, como diversas partes encaixadas, forma organismo integrado e, como organismo que é, não vive senão como coisa uma (mas que, ao transbordar, me desconcerta)
Corpo, que vejo, toco, encontro, entendo(?)

E que não marco
(que me marcar é perigoso
marcar é saber demais)

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

La Negra sembradora


Muere La Negra
Y se nos va cantando
Que el tiempo no puede callar
Quien como cigarra vivió

Muere y nos deja un poquito más huérfanos
Pero nos abraza en el aire en el que ahora reposa

Duerme Negrita,
Y vestida de aire, ¡mira!
Que los pajarillos de la eternidad
Hacen una ronda a tu lado
Y nos vamos todos, caminando, cantando y jugando
Pronto a tu lado

¡Y habrá música!
¡Y cantarás!
Y tu fuerza es tanta que te oiremos desde aquí
Y desde aquí seguiremos, juntos, por la tierra de uno
En la que quisiste vivir
La que tú misma construyó

Y tu ternura es tanta que en los días más difíciles
Sabremos cómo seguir cantando
Que tu canto, más que todo
Es la vida en nuestras venas

Tú, que cantaste mi patria,
Tú, que cantaste mi pueblo,
Tú que hablaste mi lengua, y todas las lenguas del mundo
Que amaste la libertad y por ella no te has dejado callar;

Pienso que entrarás en el cielo
Con voz de relámpago
Y antes de la risa, y antes del llanto,
Te van a aplaudir

Y desde aquí escucharemos
Como el sonido de la lluvia que cae para todos
Y sabremos que están de pié
Y te saludan como mujer, madre y hermana

Muere La Negra
Y se nos va cantando
Cantemos con ella, amada obrera
De guitarra en puño, pecho abierto y ojos sencillos
Que si se calla el cantor,
Muere de asalto la vida entera

Pero Aya Marcay Quilla la nos traerá de nuevo
Y que cada día desde hoy sea esto día sagrado
Que no olvidemos lo que nos dijo,
Que no olvidemos por qué vivió
¡Que sembremos!

Que el tiempo no puede callar
Quien como cigarra vivió.