domingo, 16 de agosto de 2009

O Coito Interrompido pelo Abutre

Era terça-feira de manhã e o coito era. Era toda a possibilidade de um coito ser, era luz e era deleite. Terça feira de manhã e nada mais importava além do coito e do nascimento que se seguiria ao coito. Nascimento de uma linda montanha depois de alguns vales verdes, e depois da montanha mais luz e rios, e toda uma nova vida viria depois da mão na nuca e do último suspiro acompanhado da última lambida de sal no pescoço do último homem e da última terra no único momento que interessava.

Mas ocorre que um abutre, invejoso de toda aquela possibilidade de felicidade, fez mostrar suas garras e seu hálito fétido por sobre a massa de alma e matéria que pariria o mundo. Esticou suas unhas bem afiadas e começou por cortar o fino fio de paz que unia as duas almas que agora eram uma só. E cortou a paz pelo fio da confiança o que inevitavelmente levou à hesitação. A hesitação era o refletir sobre o que não era para ser refletido, era o buscar o medo saindo da não-consciência. Da hesitação, o abutre conduziu a massa, já disforme, pelo vale da incerteza e da impossibilidade, até a própria incapacidade de parir a beleza em meio à carnificina que se mostrava no horizonte, trazida, cortante e mortal, no bico do pássaro atroz.

Aqui o abutre tinha que agarrar bem forte com suas garras, pois a massa já pesava e o vôo tornava-se difícil. Pesava de culpa, um imenso tumor infeccionado e em constante auto-alimentação que puxava para baixo com força imperiosa, mas o abutre estava acostumado, e quanto mais o tumor crescia mais alto ele voava, ou talvez descesse fundo e fundo, era impossível saber, pois a escuridão que se instalava em volta impedia que se visse qualquer coisa.

Antes de o tumor explodir, o motor do que era ainda girava, e a massa unida no coito, que ainda lutava, buscava insana a montanha, a linda montanha depois dos vales verdes, mas já estava contaminada, e o vôo do abutre dilacerou o último fio de confiança e verteu gozo, que enfim chegou, em cuspe vazio, num delírio mórbido feito com dor e por obrigação, no vislumbre de que o sacrifício pelas migalhas da montanha valia a farsa. Mas em vez de vida era um gozo estéril, um cuspe falsamente quente, pois que feito na culpa, no medo e na incerteza, e nenhuma montanha nasceria disso. Mas era tudo que o abutre podia trazer.

O abutre não era mau, era sua natureza de ave carniceira, e alma ou corpo jamais pensara que abrigava a ave num ninho escondido, e que para chegar à montanha seria preciso vencê-la. Pois a ave fora criada antes do primeiro beijo, antes do primeiro toque, antes da primeira insanidade. O abutre existira desde sempre, espiava, invejoso, os primeiros passos dados em direção à montanha, e esperou o primeiro gesto em falso para atacar, mortal e certeiro, alimentado durante anos pelos lugares pelos quais agora conduzia o monstro tornado bolor infértil.

Acontece que o estranho objeto que agora carecia mesmo de vontade própria, mas que já fora duas almas unidas numa só, conhecia todos esses lugares, como não conheceria? Se fora ele mesmo que construiu ao longo de tantas vidas a imensidão de terror que agora tinha à frente? Se talhara detalhadamente cada pedaço do penhasco que, impossível de ser visto, era sentido com a força de uma sentença de morte? Como não saber que aquilo tudo vinha dele?

E como não ter nele mesmo a saída para aquilo tudo? Como não saber domar o abutre que ele mesmo tinha criado e alimentado, ainda que fugisse das conseqüências desse ato e fingisse ignorá-lo? Como não poder converter o tumor em seio, e o cuspe em jorro de sêmen e leite, vida e alimento, e alcançar enfim, no coito que vinha sendo, a montanha linda depois dos vales verdes?

E, no entanto, tudo que havia era o silêncio.
Era terça-feira de manhã e já não importava mais se o coito era ou não era (mas era).

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