sexta-feira, 10 de junho de 2011

Cigarros, Nova York e galãs franceses feiosos

Foi com perplexidade, não com surpresa, que eu vi o Jornal Nacional anunciar, outro dia, que o estado de Nova York promulgou uma lei que proíbe o cigarro até mesmo nas praças e em várias das ruas da cidade! Aos que duvidam, é só acessar http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2011/02/nova-lei-em-nova-york-proibe-fumo-nas-ruas-da-cidade.html e conferir.

A lei só faz confirmar uma tendência que já se anuncia há um bom tempo: os fumantes estão se tornando párias sociais, vilões da sociedade, efetivamente marginais! Mas afinal, se podemos entupir nossas artérias com junk food, se podemos nos viciar cada vez mais em pílulas e cápsulas que prometem o paraíso, se podemos respirar o ar poluído e nos estressar no ritmo de vida alucinante das grandes metrópoles, e se ninguém questiona isso, porque o cigarro tornou-se o anti-herói do mundo moderno?

A lei promulgada em Nova York me parece ainda mais gritante pela tradição contra-cultural que a cidade inegavelmente assumiu, desde antes da década de 60. Berço dos hippies, lar dos beatniks, agora tobacco-free! Parece que a capital do planeta trocou o cigarro pelo “healthy way of life” (e, paradoxalmente, a “paz e amor” pelo stress...).

Não estou escrevendo para dizer que acho a lei um absurdo (embora eu ache); nem para defender o cigarro (que, apesar de fumante, eu não defendo de jeito nenhum). Estou escrevendo para desabafar: Nova York sem cigarro? Acho meio incompleto. Mesmo. Parece que algo está fora da ordem.

Vendo essa matéria, me lembrei de um conto que escrevi, há um tempo. Sem mais delongas tabagísticas, vamos a ele.

Cigarros, Nova York e galãs franceses feiosos

Andando na orla de Botafogo – contra o vento frio de um outono invernal, de todo atípico no Rio de Janeiro –, Rômulo procurava desesperadamente um isqueiro para acender o cigarro de filtro amarelo que esteve esperando, pacientemente, no bolso externo de sua maleta, por oito meses já completos. “Ok”, pensou, “estou me rendendo; onde eu acho algum fumante nessa cidade?”.

O ato, aparentemente de covardia (imagem pior à do fumante convicto, só aquela do ex-fumante que retorna ao vício!), escondia uma série de inquietações que iam muito além do dano biológico inegável que a fumaça do tabaco voltaria a trazer ao seu pulmão, boca e tantas outras partes do corpo. Procurando um fumante solidário pela orla da enseada, Rômulo se lembrava do sentimento de realização que experimentou no primeiro mês que passou sem a companhia de seu amigo longilíneo. E se, no segundo mês, seus amigos ainda desconfiavam de sua convicção, depois de três meses concluídos sem um único cigarro, fizeram-lhe uma festa na repartição, como comemoração ao seu feito. Ainda assim, passados oito meses, sua determinação em acender o cigarro era inabalável. Era um momento decisivo do qual não poderia mais fugir.

Sua vida vinha caminhando na mais perfeita ordem: esposa feliz, trabalho indo de vento em popa, filhos orgulhosos do pai de quem não mais precisavam ocultar a filiação na frente dos amigos (por vergonha de seus hábitos tabagísticos que, cada vez mais consensualmente, eram considerados vexatórios e próprios de marginais). Tudo corria muito bem até que, numa fatídica segunda-feira, Rômulo decidiu se estender, depois do expediente, a uma seção retrô de cinema francês, num desses espaços culturais alternativos que inundam o Centro do Rio. O motivo passava longe do filme em si: queria sair com Liza, estagiária da repartição – inteligente, apaixonada por Nouvelle Vague, seios fartos, louca por Godard, rosto angelical e, sobretudo, solteira.

Rômulo não sabia qual filme seria exibido, nem lhe interessava a informação. Entretanto, logo após o apagar das luzes, depois de letras esbranquiçadas anunciarem um “Acossado” um tanto tremido, um susto lhe fez pular da cadeira, de sobressalto. A imagem de um galã feioso da década de 60, de chapéu caído sobre os olhos e cigarro pendendo da boca, lhe fez voltar aos dezenove anos, nos seus tempos de cinemateca. Aquela cena, esquecida em sua memória, lhe voltou à mente de uma só vez, e Rômulo se lembrou do dia em que se encontrara, pela primeira vez, com aquele companheiro cancerígeno que se tornaria inseparável durante tantos anos.

Lembrou-se de que tragar a fumaça de seu Marlboro, na década de 60, era muito mais do que intoxicar o pulmão e tornar-se um pária social: era um hábito dos mais valorizados no seu círculo de amizades, um charme do qual nenhum rapaz que se pretendesse conquistador poderia prescindir. Mais do que isso, fumar era ser gente, entrar em sintonia com o mundo à sua volta – o cigarro servia de ponte, elo do fumante com o outro, com a rua, com a vida mesma. Que se danassem as complicações do hábito! Rômulo se lembrou do que o cigarro representava antes de ser perseguido como o vilão do mundo moderno, lembrou-se de quem ele era aos dezenove anos e pensou em quem era agora, já sessentão.

Lembrou-se de que seu maior sonho de juventude era conhecer a Manhattan de Woody Allen, capital do planeta, centro do Universo. Lembrou-se de que teria todas as mulheres dos seus sonhos em suas mãos (com dedos um tanto amarelados de nicotina) e de que ainda mudaria o mundo à la 1968, all you need is love! Mas tudo começaria em Manhattan, a Nova York de Cat Stevens, a cidade que nunca dorme – como ele nunca dormia aos dezenove anos.

O susto que Roômulo levou ao se ver na primeira cena do filme, cinqüenta e tantos anos atrás, o fez sair um tanto trôpego do cinema, abandonando Liza ao galã feioso francês que, provavelmente (agora ele tinha certeza), tinha muito mais a oferecer a ela do que ele. Andando a esmo pelas ruas, pensava em quem tinha se tornado, tantos anos mais tarde. Fez um balanço e o saldo era irremediavelmente negativo. Nunca fora a Nova York, meu Deus!, quem diria! Já levara os filhos à Disney, passara a lua de mel em Buenos Aires e, alguns anos depois, vira de perto os famosos canais de Veneza, mas a sua Nova York ele nunca conhecera.

Decidido a largar tudo – esposa, filhos, Liza, repartição –, Rômulo pegou o primeiro ônibus que viu pela frente, com destino à sua Manhattan, com quem já estava com dívida tão grande. Sabendo que o veículo não conseguiria transpor a distância dos anos que o separavam de seu sonho nova-iorquino, resignou-se a saltar na orla, buscando entender por que trocara Manhattan por aquela repartição, que o máximo que tinha a lhe oferecer era Liza. Subitamente sacou seu cigarro adormecido da maleta e o pressionou contra os lábios, mecanicamente. Parou de supetão.

Olhando para o ex-amigo, tentava lembrar-se do porquê de ter parado de fumar. Saúde, evidentemente. Pressão da família e dos amigos. Desejo sincero de não morrer de câncer, dali a alguns anos. Mas vendo o galã feioso do filme francês, de cigarrinho em riste, pensou se valia a pena a vida esterilizada que vinha levando havia já oito meses. A visão rápida de seu rosto galante de proporções mal dispostas o transportara de volta aos dezenove anos, e agora tudo o que importava era ir a Nova York. Mas a mera possibilidade de ir a Nova York sem um cigarro lhe apavora: não seria a mesma Nova York, não justificaria tantos anos de espera! Sem o seu Marlboro, definitivamente, mudar o mundo, all you need is love!, não seria possível.

E, no entanto, não havia um mísero fumante na orla de Botafogo, naquele frio de rachar. As bancas de jornal, fechadas, tampouco poderiam ajudá-lo. Nenhum isqueiro. Nenhum fósforo. Nada. Parecia que o mundo mesmo conspirava contra a sua missão, negando-lhe a rendição ao seu vício antigo. Mas Rômulo não poderia desistir. E não desistiu. Aceitou o fardo de acabar com o seu pulmão com a resignação de um Cristo que aceita o seu destino em nome de um bem maior. E saiu andando, pela Times Square, em plena Zona Sul do Rio de Janeiro, em busca do isqueiro que o tornaria o herói covarde que ele estava destinado a ser desde os dezenove anos.

Um comentário:

  1. Incrível a sua resposta. Agradeço por tê-la apesar de não ter respondido. Dizer que não sabe responder nenhuma das minhas perguntas exigiria no mínimo um grande tempo pensando nelas, e o que mais me intrigou foi você ter exposto não saber alguma coisa. E que para alguém que procura por tantas respostas, me admira não gostar da linguagem direta. Tentar chamar atenção sem chamar atenção. Tanto a dizer, sem nada ser dito. Sinto que um dia você pode vir a explodir. É preciso muita ousadia dizer que a linguagem direta não lhe acrescenta tanto, sendo que um simples tropeção pode lhe ensinar uma lição por toda a vida. Mais uma vez, enigmático, com certeza. Tento resolver meus enigmas através dos seus, mas sua mente, assim como a mente de qualquer ser mortal, sempre continuará sendo o melhor dos enigmas para mim. Queria mesmo saber o que se passa aí dentro, se você não se importar. Deve ser difícil manter a mente sã de acordo com alguns de seus sinceros textos.
    Novamente,
    um abraço mais que sincero.

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